[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 18 de novembro de 2011


Melómano,
eu me confesso


“(…) Mas o que está eventualmente num disco - e com maior evidência uma obra que ainda não esteja gravada num disco - nunca fechará as portas sempre abertas do devir que é o essencial da própria possibilidade da música. Muda o dia, muda a orquestra, muda o quarteto de cordas, mudo eu, muda a temperatura, muda a acústica da sala e de repente estámos perante o facto indesmentível: aquilo que pensávamos ser "a peça", foi apenas "aquela interpretação" da peça. (…)"

[O que é um melómano hoje? Quantos tipos de melómanos existem? Uma eflexão,
depois de um ensaio, sobre o mutável e o imutável. António Pinho Vargas, fb, 17.11.2011].

Em relação ao excelente texto do António Pinho Vargas, cuja obra, sempre que posso, vou acompanhando com o maior interesse, apenas posso dar o meu testemunho de melómano. De facto, a discoteca cá de casa não é especialmente rica. Se a comparar com o incomensurável tesouro da minha experiência de frequentador das salas de concerto - ao longo de dezenas de anos, desde miúdo, já que fui iniciado por pai e avô que eram músicos e grandes melómanos - então, a distância é enorme.


Sem dar muito pelo tempo que passa, a verdade é que há cinquenta anos que celebro a música constantemente, em directo, em Portugal e por essa Europa fora, especialmente, em Salzburg onde, há muito tempo, fiquei preso, perfeitamente cativo. De facto, tenho o incrível privilégio e o invejável poder de marcar a agenda da minha vida a partir dos compromissos musicais.

Em primeiro lugar, de facto, está a Música. Há quem goze comigo, por exemplo, em relação à frequência da Gulbenkian, onde me encontram em todos os eventos musicais, várias vezes por semana, já que tenho assinatura para todos os ciclos, e gozam, propondo que alugue um quartinho ali para a Av. de Berna, muito mais à mão do que ter de me deslocar de Sintra onde moro…

De facto, o meu incrível tesouro não evidencia quaisquer formas exteriores da imensa riqueza que tenho acumulado ao longo de tantos anos. Não é coisa material. Nem sequer material como o disco, que, para mim, é produto de uma estratégia de recurso. Congela um momento de música. E, se o momento não foi captado num evento em directo, então, quantas e quantas vezes não é fruto de engenhosas manigâncias que comprometem a autenticidade da peça?…

Cá por casa, há ainda centenas de discos em vinil, de 33, 45 e mesmo de 78 rpm, muitos herdados das casas dos meus avós e pais. Naturalmente, também há imensos CD, a maior parte dos quais terei ouvido apenas uma vez. Hão-de seguir para casa das minhas filhas e netos, como um património absolutamente secundário.


A riqueza essencial, substancial, neste domínio da minha vida de melómano, essa transformou-se, isso sim, na pessoa que sou, com os defeitos e virtudes que me definem e condicionam. Ah, é verdade, do meu património palpável, também consta uma boa quantidade de cadernos de 1/8, de capa dura, cheios de milhares de páginas manuscritas, sob a forma de diário, que me têm ajudado a racionalizar a experiência musical vivida.


Naquelas folhas de diário íntimo, coisa que jamais foi escrita a pensar em qualquer forma de publicação, os meus prováveis leitores talvez encontrem algum material que os ajude a entender, além do autor, muito mais, o tempo e o espaço do autor.

No meu caso pessoal, não será preciso fazer um grande esforço para perceber como o melómano se confunde com o diletante, com o viajante, e, em certos casos, com o de peregrino, como acontece com Salzburg (tão especialmente, no Inverno, por altura da Mozartwoche) ou Bayreuth, sempre em busca do instantâneo momento em que Arte, Beleza e a centelha do Divino acontecem. Claro que também podem não acontecer… Esse o sortilégio do directo.




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