[sempre de acordo com a antiga ortografia]
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
Ontem,
27 de Dezembro e 1786
Em 27 de Dezembro de 1786, no mesmo dia em que considerava a hipótese de se estabelecer em Inglaterra, (re)compunha Mozart a Ária de Concerto Ch'io mi scordi di te? ... Non temer, amato bene para soprano com piano obbligato, K. 505. Pelo próprio punho, escrevia Amadé no seu catálogo: “(…) den 27:tem, Scena con Rondò mit klavier Solo. für Mad:selle storace und mich. begleitung. 2 violini, 2 viole, 2 clarinetti, 2 fagotti, 2 corni e Ba (…)”
Mesmo os que não sabem Alemão entendem que se trata de uma peça que o compositor escreveu para (Nina) Storace, a grande voz da actualidade por aqueles dias vienenses, “und mich” i.e., e para mim, indicando que ele próprio também a estreou. A propósito desta obra que exige irrepreensíveis dotes vocais, gostaria de vos contar o episódio absolutamente verídico, cujos meandros, como privilegiado membro do Mozarteum de Salzburg, acompanhei em 2006, ano do jubileu mozartiano, por altura do seu 250º aniversário.
Para o concerto de gala do dia 27 de Janeiro, no Grosses Festspielhaus, a Fundação do Mozarteum tinha convidado René Fleming que interpretaria esta peça acompanhada ao piano, nem mais nem menos do que por Mitzuko Ushida. Portanto, como se depreende, tudo ao mais alto nível mundial. Pois bem, praticamente sem qualquer hipótese de substituição, o agente de René Fleming informou o Mozarteum de que a diva não se sentia particularmente confortável para a interpretação da ária, sugerindo que fosse apresentada uma alternativa…
Garanto a veracidade deste documento. Eu li-o. Se bem entendem, nas entrelinhas, e, por outras palavras, preto no branco, o que René Fleming dava a entender era que, pelo menos, naquela altura, o seu gabarito não chegava para cantar Ch’io mi scordi di te. E, com indisfarçável sobranceria, ainda pedia que tratassem, isso sim, de lhe apresentar uma outra proposta, enfim, mais acessível…
Bem, com quem ela se meteu! Se lhe passou pela cabeça que o Mozarteum alteraria uma vírgula ao convite inicial, deve ter ficado siderada quando leu a resposta inequívoca – à qual eu também tive acesso – em que a Fundação reiterava o que havia proposto, esclarecendo mesmo o seu objectivo de apresentar uma obra de grande dificuldade em que, também naquela especialíssima gala, mais uma vez, o génio de Mozart estaria bem patente.
Resumindo e concluindo, a Fleming borregou. E, para a substituir, servindo-se de meios que mais nenhuma casa em todo o Mundo se poderá gabar, o Mozarteum conseguiu que, em cima da hora, Cecilia Bartoli assegurasse a interpretação da obra que Mozart compusera para a Storace duzentos e vinte anos antes. Com um profissionalismo a toda a prova, a Bartoli foi excelente, mal tendo tempo para se preparar.
Tendo tido oportunidade de assistir, até posso confirmar, como então escrevi numa crítica, que a Bartoli cantou a ária evidenciando uma coloratura mais floreada que o exigível, fugindo algo ao classicismo da peça, e propondo contornos mais barrocos, registo em que é exímia. Como o YouTube já não conserva o registo gravado daquela noite memorável, em que Mozart foi honrado ao mais alto nível, proponho outra interpretação, com o soprano Sandrine Piau e Helène Grimaud. Asseguro-vos que não ficam menos bem servidos.
Boa audição!
SANDRINE PIAU Mozart - Ch'io mi scordi di te? Non temer, amato bene http://www.youtube.com/
Mozart - Ch'io mi scordi di te? Non temer, amato bene - Recitative and Aria for Soprano, Piano & Orchestra K.505 SANDRINE PIAU (Soprano) HELENE GRIMAUD (Piano).
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