Salzburg, 27 de Janeiro, 2012
Sasha Waltz,
Gefaltet
Ainda dia 27, às sete e meia da tarde, a iniciar o programa oficial da Mozartwoche, a proposta de um concerto coreografado por Sasha Waltz, a partir de peças de Mozart e de Marc André, jovem compositor francês contemporâneo. Pessoalmente, estava na maior expectativa já que as credenciais desta coreógrafa são de nível máximo e, em Salzburg, bem comprovadas com a óptima receptividade de Continu, estreado em Zurique em 2010 e aqui reposto no Festival do Verão passado.
Importa que entendam que, no ano passado, precisamente no dia 27 de Janeiro, quando comprei os bilhetes para este ano, foi dado a todos os interessados um programa geral, pormenorizadíssimo, com todas as informações acerca do que, agora, está a acontecer. Aliás, nestes grandes festivais, é invariavelmente assim e, de facto, só se pode trabalhar assim. Portanto, há um ano, eu sabia tudo o que devia e, naturalmente, em função das linhas de força apresentadas, conjecturei sobre a proposta de Waltz.
Contudo, de facto, o que vim encontrar ultrapassa tudo o que imaginar se possa. Gefaltet é uma análise de Mozart, com referência ao presente, articulada com a questão de saber como trabalhar com Mozart nos nossos dias. Gefaltet [=dobrado] relacionar-se-á com o processo matemático da dobragem, segundo o qual duas funções estão ligadas uma à outra dando origem a uma terceira, como se fosse uma resposta.
Ininterruptamente, durante duas horas certas, no palco do Landestheter, oito bailarinos e quatro óptimos músicos – quem conhece Carolin Widman, violino, Guy Bem-Ziony, viola, Nicolas Altstaedt, violoncelo e Alexander Lonquich, piano, entende o nível do conjunto a que me reporto – vivenciaram, em diferentes dimensões, o Divertimento KV 563, as Sonatas KV 310 e 304, o Adagio KV 540, a Gigue KV 574, o Rondo KV 511, o Allegro do Quateto de Cordas 478, em Sol menor* e três peças de André.
Cento e vinte minutos de ‘alta estética’, espectáculo culto, desafiador, provocatório, iconoclasta, com inusitada insistência na lenta decomposição dos movimentos, no absoluto respeito da plasticidade da própria música, tudo projectado numa dimensão outra, [Gefaltet] talvez um meta-espaço, em que movimento e música se fundem na conquista do vazio.
Bailarinos jovens, muito seguros, dão tudo o que é humanamente possível exigir. Que bom poder dizer-vos que a grande estrela é um jovem moçambicano, Edivaldo Ernesto, de inesgotáveis recursos!
Verdadeiramente avassalador o ritmo das surpresas, com frequente recurso à finíssima ironia mozartiana, sem qualquer ponta de gratuitidade, pelo contrário, tudo intencional, opera aperta, aberta a todas as leituras, desde que inteligentes. Os músicos são tão coreografados como os bailarinos. Os instrumentos, todos os instrumentos, incluindo o pesadíssimo Steinway, evoluem no espaço com inaudita elegância ou se quedam, inertes, cheios de sentido, numa quietação expectante.
Estive sentado num lugar óptimo, na quinta fila da plateia, mesmo ao centro, sem hipótese de perder o mínimo detalhe, sentado, preso, cativo da proposta de Sasha Waltz. E que bem soube aquela submissão assumida!... Quando a Arte assim acontece o único risco é o de que nos percamos na confusão das coordenadas de espaço e tempo, ou seja, de que nos passemos.
Finalmente, se querem que vos diga, não sei bem se ainda continuam os aplausos, comoventes, catárticos. Mozartwoche, 2012, que começo mais auspicioso!
É por estas e por outras que não perco. Ano após ano, não tem preço o que venho encontrar.
Aqui têm uma gravação da última das peças de Mozart constante de Gefaltet. Boa audição!
* Sol menor, tonalidade frequentemente relacionada com a ideia de grande inquietação, inclusive, de morte.
http://youtu.be/fvD0ubvQvqE
Mozart Piano Quartet 1 in g minor, k. 478 (1/3) http://www.youtube.com/
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