[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012



Salzburg, 4 de Fevereiro
Mozartwoche, 2012

Grosses Festspielhaus, 19,30
Orquestra Filarmónica de Viena,
Daniel Barenboim, maestro e pianista

Outro concerto com a Filarmónica de Viena, desta vez sob a direcção de Daniel Barenboim que, em função de distintas mas convergentes razões, se evidenciou como uma das mais influentes e mediáticas personalidades deste tão singular mundo da música erudita. Acompanho a sua carreira, desde princípios da década de setenta, quando já era um pianista de renome e, em especial, nessa condição, assisti a muitos dos seus recitais e concertos, por exemplo, no Festival de Luzern.

A partir de determinada altura, entre meados dos anos setenta e fins dos oitenta, passou a ser muito mais como maestro que o fui encontrando. Particularmente bem impressionado, me lembro de ter aplaudido a sua direcção da Orquestra do Festival de Bayreuth, em 1987, com um Parsifal ainda hoje memorável, da produção de Götz Friedrich.

Para sua fama e proveito, as orquestras Sinfónicas de Paris, Chicago, do Teatro Alla Scalla de Milão têm-no tido como maestro titular. Muito empenhado no projecto de aproximação de árabes e judeus, deve-se-lhe, juntamente com Eduard Said, a formação da West-Eastern Divan Orchestra, constituída por jovens músicos de ambos os lados em confronto.

Sem entrar em pormenores da biografia deste galáctico, não deixa de ser interessante referir que, desde muito novo, ficou ligado a Portugal por ter beneficiado do patrocínio da Senhora Marquesa de Cadaval, em cuja Quinta da Piedade, em Colares, namorou com aquela que se tornaria sua primeira mulher, a malograda Jacqueline Dupré, excepcional violoncelista.

A sua ligação a Salzburg, cidade onde estudou desde idade muito precoce, é permanente, nos vários festivais, desde a Mozartwoche ao Festival da Páscoa ou ao de Verão. Tenho memórias belíssimas de algumas das suas intervenções e devo dizer que, durante muito tempo, experimentava a boa expectativa de o rever e, sempre com imenso gosto, presenciei as suas prestações quer como maestro quer como solista.

No entanto, de há alguns anos a esta parte, talvez porque diversificou de tal modo as suas actividades que passou a faltar-lhe o tempo bastante para a preparação das peças que se compromete como pianista. Isto mesmo tenho observado e dado conta em alguns textos que vou publicando, impressão que nunca foi ao ponto de afirmar que, ao interpretar determinada sonata de Beethoven, parecia que estava a tocar máquina de costura, expressão que numa certa noite de Lisboa, à saída da Gulbenkian, ouvi da boca de alguém que sabe da poda…

Desta vez, na Mozartwoche, ao interpretar o Concerto em Ré Maior KV 537, o famoso Krönungskonzert (Concerto da Coroação) que, igualmente, dirigiu não poderá dizer-se que não tivesse estado até bastante bem. Percebe-se perfeitamente tratar-se de peça que conhece de trás para diante. Mas não transpareceu nada de particularmente substancial como, por exemplo, acontece na gravação que vos proponho, com Frierich Gulda, também como solista e maestro da Orquestra Filarmónica de Munique, em que Mozart lá está em todas as dimensões.

Então Barenboim não está a conseguir dar ao público esse Mozart total? Pois, se calhar não. É que a mesma sensação de falta de empenho aconteceu com o outro Concerto para piano, o KV 491, do mesmo compositor, que ainda interpretou na segunda parte. Tudo muito certo, as notas todas, a orquestra impecável mas o Mozart a que temos direito, esse que tivemos a rodos, com Mitsuko Uchida, com Radu Lupu, com Robert Levin, esse não morou por ali, naquela noite no Grosses Festspielhaus.

Para o fim deixo referência à peça que maior contentamento me proporcionou. Nessa, apenas enquanto maestro, Barenboim apresentou o resultado de um estupendo trabalho de preparação da Kammersymphonie für fünfzehn Soloinstrumente op. 9 de Arnold Schönberg. Tal como indica a designação, a obra destina-se a quinze instrumentos solo (oito sopros de madeira, duas trompas, quarteto de cordas e contrabaixo), com explícitas referências a Richard Strauss, Mahler e Wagner, obra muito compósita, com constantes mudanças de tempo, música do futuro em que cada instrumento é um solista virtuoso, fazendo-se ouvir em texturas caleidoscópicas de extrema sofisticação.

Peça de dificílima execução e não menos exigente direcção, como já terei dado a entender, constituiu o momento em que mais Arte e Beleza ali se viveu, em que os solistas da Filarmónica de Viena demonstraram como, de facto, são dos melhores do mundo e, naquele caso, em simbiose e perfeita cumplicidade com o maestro. Pudesse Barenboim estar sempre a este nível…

À laia de sociológica divagação...

Mas não fiquem pensando, por estarmos em Salzburg, que, através do aplauso, o público sabe distinguir estes matizes que vou tentando transmitir-vos. Terei de confessar-vos, com alguma tristeza que assim não é. Aliás, como em todos os auditórios que frequento, há uma pequena parte de público verdadeiramente conhecedor e uma massa, mais ou menos homogénea, para quem os dois referidos concertos para piano e orquestra de Mozart, foram extraordinariamente bem tocados porque foram tocados pelo Barenboim…

Para quatro quintos das cerca de duas mil e duzentas pessoas ali presentes, aquela figura mediática de maestro e pianista que tiveram oportunidade de ver e ouvir, foi apenas mais uma estrela cujo fraseado e touché são incapazes de destrinçar do de outro pianista… É verdade. E é tão verdade em Salzburg como em Lisboa, na Gulbenkian. Por exemplo, querem saber do que me apercebi, durante uns minutos que antecederam o início deste concerto no Grosses Festspielhaus, mesmo na fila à minha frente?

Ora bem, muito formal, o noivo de uma menina, igualmente muito formal, tinha convidado para o evento os pais da ‘piquena’, igualmente muito embiocados, que nunca ali tinham entrado, dando bem a entender que, de facto, aquele não era o seu ambiente. Mas, tudo bem, apenas estou a passar-vos a cena de um episódio muito frequente, cujo enquadramento sociológico não deixa de ser interessante.

Tal como, aqui em Sintra – quando, por altura do Festival, os patrocinadores oferecem bilhetes aos seus empregados e eles, coitados, muito formais, lá trazem as mulheres, que foram de propósito ao cabeleireiro e vestem o melhor fatinho porque o concerto é assim coisa a atirar para o chique… - acontecera que o rapaz, com os bilhetes oferecidos pela empresa, aproveitou a oportunidade para demonstrar à futura família como tinha acesso a uma coisa destas, sempre entendida como prestigiante.

Naturalmente, tais pessoas aplaudem freneticamente, mesmo que o solista tenha feito qualquer disparate mais evidente. E, quem sabe alguma coisinha, o melhor que tem a fazer é, quanto muito, observar, não deixando de enriquecer o seu palmarés de experiências nos auditórios, não se impressionando por aí além pois, caso contrário, acabaria por cair na atitude de certos apreciadores [até que ponto serão melómanos é algo difícil de expressar] que, por causa destas e doutras misturas, não frequentam as salas de concerto. Também não é caso para isso…


Então, a gravação acima referida. Boa audição!

ttp://youtu.be/3stLTO64ADs
Mozart concerto 26 (Coronation) - 1. Allegro (1/2) (Gulda)

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