[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 21 de maio de 2012

 
 
 
Obscenidade
 
(texto inicialmente publicado no facebook no dia 29 do passado mês de Abril)
 

 Gostaria de chamar a vossa atenção para a página 18 do primeiro caderno da edição de ontem do ‘Expresso’. Emoldurada com grossa cercadura bordeaux, sobre fundo verde escuro de densa folhagem de arbustos, três quartos do espaço são totalmente ocupados por uma foto, metade inferior da qual preenchida pela figura de Miguel Portas, em atitude meditativa, com os cotovelos sobre os joelhos ...e mãos unidas entre o queixo e a boca. Está vestido de azul e vermelho, sentado num grande banco de jardim imaculadamente branco, com os sapatos sobre a relva que prolonga, em verde mais claro, o ambiente do parque ou do jardim em que a foto foi conseguida.

Subordinada ao título ‘Miguel Portas (1958-2012)’, ocupando a metade superior da mesma foto, um texto a cinco colunas, portanto, a toda a largura, em caracteres brancos, contrastando com o já referido fundo verde escuro, assinado por Cristina Figueiredo, cujo conteúdo, muito saudavelmente, ultrapassa o carácter biográfico-necrológico-laudatório de textos redigidos em idênticas circunstâncias.

Deixem-me confessar a impressão pessoal de que esta composição resulta muito bem. Cromaticamente é fortíssima, não conseguindo eu alhear-me do facto, certamente fortuito, da figura daquele homem, a azul e vermelho, se conjugar às mil maravilhas com o grande, comprido, impositivo branco daquele banco de jardim. É a tricolor serena mas imediata imagem da Liberdade, Igualdade, Fraternidade que Miguel Portas conjugou durante toda a sua vida de cidadão interveniente. Se esta leitura ultrapassa os objectivos iniciais da foto, paciência. Subliminarmente, ela lá está proposta.

Ora bem, para outras leituras implícitas e explícitas, agora vos tenho de convocar. E, de facto, com tristeza o faço porque não me passa pela cabeça ser fruto dum ataque de perversidade galopante, que ontem me teria afectado, o que passarei a dar conta. Pois, então, continuem a acompanhar-me nesta proposta de descrição da página 18 da última edição do ‘Expresso’.

Até este momento, cumpre lembrar, tinham acedido aos três quartos da página, a toda a largura. Pois o espaço restante, também a toda a largura deste quarto inferior, aparece sobre fundo vermelho. Todas as mensagens se evidenciam em contrastante branco. Trata-se de um grande anúncio publicitário. Os caracteres de corpo maior vão para a mensagem inequívoca BANCO MAIS SÓLIDO encimada por outra que reza ‘O que somos no dia-a-dia, o mercado reconhece ano após ano. E, mesmo quase no canto inferior direito, afinal, de toda a página, destacando-se sobre a já aludida mancha vermelha, num quadrado de fundo branco, a única mensagem em caracteres a negro O VALOR DAS IDEIAS.

A publicidade é ao Banco Santander Totta. É um facto indesmentível. Mas, meus caros leitores e amigos, o espaço da página é do ‘Expresso’ que, ao deixar passar esta paginação, presta um péssimo serviço aos leitores e à memória de Miguel Portas, ele que sempre denunciou a fancaria ordinária que subjaz a qualquer manobras de compromisso congénere. Neste caso, trata-se de cena promíscua entre uma empresa de comunicação social – cuja componente escrita é fortemente liderada por este semanário de referência nacional – e uma entidade bancária que, provavelmente, precisaria desta boleia inqualificável.

Um jornal a sério teria visto o que eu vi. Trata-se de um aproveitamento revoltante. Miguel Portas não merece este abuso. Nada imagino que possa apagar o perverso efeito de cena tão evitável, deselegante. Cena obscena. Olhem, meus caros, se me acompanham nesta leitura, façam o favor de o expressar ao ‘Expresso’.
 
 
 

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