Parsifal em Sintra
[artigo publicado na edição de 15 de Junho de 2012 do 'Jornal de Sintra]
“(…) a paisagem de Sintra, na sua representação literária, absorve os traços característicos de duas categorias estéticas que o Romantismo tornou sobremaneira produtivas... e típicas – o pitoresco e o sublime.
(…) Quanto ao sublime, conceito estético contemporâneo do pitoresco mas, ao contrário deste, transferido da teoria literária para a história da arte, trata-se de uma designação onde estão combinadas as noções de extraordinário, atemorizante e intensamente emotivo que se aplicam para descrever certas paisagens onde predomina o belo terrível. Nas páginas dos autores oitocentistas e, de forma epigonal, nos textos dos nossos contemporâneos, encontramos nas linhas ou entrelinhas, referências dispersas ou enumerações sistemáticas dos elementos e atitudes com a experiência do sublime que as serranias de Sintra e as escarpas a pique sobre o mar oferecem ao viajante. (…)”
João ALMEIDA FLOR, A Paisagem de Sintra-Natura, Cultura e Literatura*
Recorro a esta citação – cujo autor foi meu professor há quarenta e muitos anos na Faculdade de Letras de Lisboa – como porta de acesso ao episódio da visita a Sintra do compositor germânico Richard Strauss (1864-1949), durante a qual proferiu uma sentença cuja substância nos é muito cara. Na Pena, viajado como era, comparou o que via ao que já conhecera da Itália, Sicília, Grécia ou Egipto, concluindo que nada se lhe revelara tão belo. Disse mais, que o parque era o verdadeiro jardim de Klingsor, território de tal modo místico que, lá no alto, nada mais nada menos podia estar do que o próprio castelo do Santo Graal.
Parece-me evidente a conjugação destas duas distintas situações como peças inevitáveis e indissociáveis. No entanto, pisando terreno tão proverbialmente afecto à estética romântica, conotado com uma imensa e ecléctica paleta de enquadramentos, que se desdobram, por exemplo, entre arquitectura e paisagismo ou da literatura à música, torna-se evidente a necessidade de perceber o que passava pela cabeça do grande músico bávaro, quando disse o que disse sem que, com tais palavras, apenas pretendesse ser agradável aos anfitriões.
Com o libretto de Parsifal
A propósito, contudo, tenho constatado que certas pessoas, mesmo no desempenho de funções relacionadas com o mundo da Cultura em Sintra, até são capazes de lembrar o episódio da passagem de Richard Strauss por esta terra mas, não raro, desconhecem totalmente a que Klingsor se referia o homem, embora se possa admitir que talvez já tenham ouvido falar do Graal… Por isso, este texto de hoje, que muito longe me poderia levar na despretensiosa tentativa de contribuir para o esclarecimento que se impõe.
Primeira e muito sumariamente, cumpre confirmar que Strauss não faz qualquer comparação mas, isso sim, enuncia uma dupla metáfora: assim, enquanto o parque da Pena «é» o jardim de Klingsor, o Palácio da Pena «é» o Castelo do Graal, num recurso de estilo que se limita a invocar os enquadramentos cénicos principais da ópera “Parsifal” de Richard Wagner.
Pois bem, para correcto entendimento, impõe-se que vos lembre o libretto deste drama místico para elaboração do qual o mestre de Bayreuth se inspirou nos temas de Chrétien de Troyes, trovador cátaro do Sul da França do fim do século XII, (?1135–?1191) autor de romances da cavalaria, entre os quais Perceval ou o Conto do Graal.
Inicialmente, não podemos deixar de ter em consideração que a acção se relaciona com os primeiros tempos da cristandade. Na noite em que Jesus Cristo Jesus celebrou a última ceia com os discípulos, bebeu o vinho por um cálice que, mais tarde, José de Arimateia utilizou para colher o sangue que lhe saía do ferimento provocado durante o martírio da paixão, guardando também a lança ensanguentada que fora usada para o ferir. Tais relíquias ficariam à guarda de anjos até à noite em que um enviado de Deus ordenou a Titurel, pai de Amfortas, que construísse um castelo para as acolher. Assim se explica a origem do Castelo de Monte Salvat onde os santos objectos ficaram sob a protecção de Titurel e de um grupo de cavaleiros nobres e castos.
Porém, num vale distante, vivia um mago que, não sendo casto, pretendera tornar-se Cavaleiro do Graal. Percebendo os seus baixos desígnios, o rei Titurel não o admitiu. Klingsor construiu então um castelo rodeado por um jardim mágico, povoando-o com meninas de beleza excepcional, meio donzelas meio flores, cuja missão era a de fazer perder os cavaleiros do Graal no seu caminho de ingresso ou regresso do Monte Salvat, tentando que quebrassem os votos de castidade e, efectivamente, conseguindo que muitos se tornassem prisioneiros de Klingsor.
Em determinada altura, Amfortas, que saira do castelo com a lança, é ferido às mãos do próprio mago. A partir desse momento, fica vítima de um tormento atroz pois todas as vezes que dirige o olhar para o Graal sente a ferida arder. Só um inocente casto, um puro tolo, isto é, Parsifal poderia recuperar a lança e redimir de tamanha expiação. Numa prova de evidente Iniciação, Parsifal atravessa o jardim mágico de Klingsor, resiste às tentações das donzelas sendo seduzido por Kundry, que tanto assume a condição de fiel serva do Graal como de escrava do mago. Ao beijá-la, sente os estigmas das feridas que afligiam Amfortas e, quando Klingsor tenta atingi-lo com a lança, esta dá-lhe a volta ao corpo e todo o castelo mágico é destruído. Mais tarde, os cavaleiros reconhecem nele o inocente casto que acaba por curar as feridas de Amfortas e celebrar, ele próprio, o mistério de Sexta-feira Santa.
Um subtil voto
Sujeito à ditadura do espaço definido por estas colunas do JS, muito deixei de dizer do argumento da ópera. Mas, tendo de voltar às palavras de Richard Strauss, apenas pergunto se estando ele tão convencido do que deu a entender - ou seja, que Parsifal teria andado pela Pena... - quem somos nós para não acreditar que, em 2013, quando se comemora os duzentos anos do nascimento de Richard Wagner, não teremos uma boa surpresa no nosso encantado jardim de Klingsor?...
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*in Sintra Património da Humanidade, Coordenação de José CARDIM RIBEIRO, Câmara Municipal de Sintra, 1998
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E agora, inevitavelmente, a cena da tentação de Parsifal pelas Blumenmädchen no II Acto da ópera.
Boa audição!
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