[Texto publicado no Jornal de Sintra em 27 de Julho de 2012]
Dr. Saraiva
mais um testemunho
mais um testemunho
Embora já o conhecesse de vista, porque morávamos não muito longe, só a meio da década de sessenta, quando estava a terminar o secundário, é que tive o ensejo de contactar com ele. Andava eu já no último ano do Liceu, no D. João de Castro, ao Alto de Santo Amaro – escola agradável, simpática, tranquila, conhecida até por uma certa liberalidade de costumes, em particular, vejam lá, por ser um liceu misto, com meninas frequentando os sexto e sétimo anos – quando o Dr. Saraiva foi indigitado e assumiu as funções de Reitor.
As novidades não se fizeram esperar. Pouco depois, autorizava ele o funcionamento de uma Pró-Associação de Estudantes, coisa que, repito, precisamente a meio dos anos sessenta, era mesmo excepcional. Igualmente excepcional e, de algum modo, em atitude que lhe terá sido cara como homem da comunicação, o despacho favorável do projecto de um programa de rádio que, de imediato concretizado, emitia muita música durante o intervalo maior do turno da manhã, através de altifalantes dispersos pelos corredores e pátios.
Carismático
Foi numa certa manhã do princípio do segundo período lectivo em que, tendo faltado a professora de Português, o Dr. Saraiva nos entrou pela sala de aula, completamente de surpresa. Rapidamente, quebrou o gelo inicial. Pouco depois, sobre mim, o único elemento masculino daquela turma de Filologia Germânica, senti o seu olhar penetrante. De pé, com a cabeça bem erguida, agigantando-se a reduzida figura sobre o estrado:
“Como é que vocês aguentam isto?! Que frio de rachar! Nem tiro a gabardina! Ó rapaz, toma lá a chave, vai lá abaixo ao meu gabinete, procura a "Mensagem" do Pessoa, em cima da secretária – não podes enganar-te, é uma encadernação muito boa, a carneira verde, que logo te salta à vista – e traz-ma para podermos trabalhar”. Tão sintomaticamente quanto quiserem entender, ao expressar o pedido, que era uma ordem, segurava o cigarro 'Marlboro' com todos os dedos da mão direita. Claro que o rapaz era eu, o chefe, pois claro que, por aqueles dias, onde houvesse um galo, não cantavam as galinhas...
Cumpre esclarecer que, da "Mensagem", tinha eu uma opinião muito verde, tão imberbe quanto os meus dezasseis anos. O Caeiro e o Campos, esses sim, correspondiam ao Pessoa que eu amava, enquanto o ortónimo, o da Mensagem, esse achava-o eu cinzentão, nacionalista. Pois o Saraiva, sabendo perfeitamente para quem falava, parecendo adivinhar as reservas de todos os que pensavam como eu, dissipou os preconceitos que toldavam o entendimento da obra, restituindo o direito a uma leitura enxuta.
Em meia hora conquistara-nos. Estávamos rendidos ao seu feitiço. De facto, embora habituados a privar com bons e alguns excelentes professores, o que nem eu nem as minhas colegas estávamos habituados era àquele autêntico espectáculo, em que as linguagens verbal, facial, gestual e corporal compunham uma figura fascinante. Apenas uma colega destoava quanto à impressão geral causada pelo Dr. Saraiva naquela turma de finalistas pré-universitários. Inapelavelmente, há quase cinquenta anos, logo o classificou: – Demagogo!, disse ela.
Eficaz
Passariam apenas umas poucas semanas para que, muito directamente, viesse a perceber como o Dr. Saraiva levava a sério e não protelava qualquer assunto que exigisse o exercício da autoridade que lhe competia como Reitor. Conto muito rapidamente. A professora de Português, cuja falta originara a tal aula de substituição, era tão fraca docente e faltava tanto que suscitou um inusitado movimento da nossa turma. Chegámos à conclusão de que, pura e simplesmente, não poderia continuar a ser professora de alunos que, dentro de poucos meses, teriam de enfrentar duras provas de exames de Português e de Literatura Portuguesa, inclusive de acesso à Faculdade de Letras.
E, arvorados à condição de delegados da turma, para falarem com o Reitor acerca da melindrosa questão, lá foram o chefe e uma colega. Infelizmente, não disponho de espaço para entrar em detalhes. Contudo, fiquem sabendo que, em quarenta e oito horas – estão a ler bem, sim senhor – dois dias depois, tínhamos uma nova professora! Nem por um segundo pôs o Dr. Saraiva em causa a seriedade da nossa denúncia que, a um tempo, era tão desconfortável e tão digna, pela exigência da qualidade do ensino a que tínhamos direito. Certamente, certificou-se ele das nossas razões. E, sem qualquer alarde, actuou. Escolhida pelo Dr. Saraiva, a substituta era magnífica. Fez-nos trabalhar o que não podem imaginar. Recuperámos tudo o que era necessário e entrámos na Faculdade preparadíssimos para os estudos universitários.
Visionário
Agora, continuando na primeira pessoa, o meu testemunho salta até ao fim da década de setenta, quando já era Técnico Superior do Ministério da Educação. Não tardou muito para que tivesse de me debruçar sobre o maior projecto editorial português, a designada 'Colecção Educativa', privilegiado instrumento do Plano de Educação Popular, a cargo do Ministério da Educação Nacional, primeiramente, através da Direcção-Geral do Ensino Primário e, mais tarde, pela Direcção-Geral da Educação Permanente.
Naturalmente, tinha as características de um produto da última fase do Estado Novo. E, tanto assim era que, antecedendo a página de rosto de todos aqueles livros, que se contavam por muitas e muitas centenas de milhar, havia citação de um discurso de Oliveira Salazar. Todavia, quem concebera o projecto –nem mais nem menos do que o Dr. Saraiva, então Ministro da Educação do último gabinete do ditador – pedira e obtivera a colaboração de insuspeitos nomes das Letras e Ciências portuguesas, tais como, entre muitas dezenas de notáveis, José Régio, Vitorino Nemésio, Matilde Rosa Araújo, Tomás Ribas, Ana Hatherly, Henrique Barrilaro Ruas, Rómulo de Carvalho, etc, etc.
A 'Colecção Educativa' pretendia ser um grande veículo de divulgação do Saber, capaz de chegar às camadas populares menos letradas e, sem compromisso de qualidade, abranger a esmagadora maioria das áreas do conhecimento. Nalguns casos terá conseguido, noutros resvalaria para uma perspectiva paternalista. Mas, dos referidos Plano e Colecção, o que prevalece é a concepção de um visionário, de um divulgador visionário, de um homem que, mais tarde, ao fim e ao cabo, em plena vigência do regime democrático, se notabilizaria não como historiador mas como divulgador, um eficientíssimo divulgador da História.
Então, a sua atitude durante a crise académica de sessenta e nove, que também vivi? Bem pode dizer-se que se tratou de uma crise dentro de um sistema que era «a crise» institucionalizada... Ficam para outra ocasião as minhas histórias desses dias. Chegado ao fim da vida, José Hermano Saraiva confessava o seu maior defeito a Fátima Campos Ferreira, que lhe colheu a última entrevista. Reconheceu-se como um petulante, nem mais nem menos, tal qual lhe apontava o notabilíssimo e tão saudoso Prof. António José Saraiva, seu irmão. Saraiva, o petulante? Ou, com essa confissão e reconhecimento, mais uma lição de alguém que foi professor até ao fim?
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