[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quinta-feira, 2 de agosto de 2012


Funcionários públicos,
tão à mão…



Com origem em diversos quadrantes, é opinião corrente em certos meios que, afinal, o governo tinha encontrado uma solução muito talentosa para se financiar em dois mil milhões de euros, com o patriótico objectivo de cumprir o estabelecido com a Troika, até que o Tribunal Constitucional veio estragar tudo. Já toda a gente estava descansadíssima, com os chupistas dos funcionários públicos e pensionistas a resolverem um assunto tão incómodo e, agora, acontece isto…

Comparado com o slôgane ‘os ricos que paguem a crise’, isto é muito mais sofisticado. Durante anos e anos, incomparavelmente mais do que os grandes detentores do capital, os trabalhadores da Administração Pública foram perfeitamente diabolizados, como se, na sua actividade, estivesse sediado todo o mal que consome as entranhas do Estado, tanto a nível nacional como local.

Como é que, em Portugal, haveria de ser diferente? Está claro que, tanto no sector público como no privado, aliás, como em todas as latitudes, há excelentes, bons, regulares, maus e péssimos trabalhadores. É escusado andar à procura dos cidadãos cuja exposição e características de enquadramento laboral se revelarem «mais a jeito», no sentido de, escandalosamente, lhes atribuir «culpas» que justifiquem a transferência para si de medidas cujos benefícios abranjam toda a sociedade.
Basta! É altura de dizer não ser possível continuar com esta atitude, enfrentando quem verbaliza discurso tão contundente quanto melindroso.

Quanto aos supostos privilégios dos trabalhadores do sector público, já nos esquecemos de que, durante décadas, ganharam significativamente menos do que os outros? Com respeito à estabilidade do posto de trabalho? Se alguma vez aconteceu, meus senhores, já foi… Veja-se o que está a acontecer com professores – atenção, não os contratados, a quem, perversamente, não foi concedida a possibilidade de criarem um vínculo com a Administração, mas a profissionais dos quadros! – sem funções lectivas atribuídas e com o lugar em risco? E, a propósito da carreira docente, já nos esquecemos dos estágios de dois anos não remunerados?

Já nos esquecemos de que, na sequência do processo de descolonização, este país acolheu dezenas de milhar de funcionários públicos que inflaccionaram os quadros da «metrópole» e que, a médio e longo prazos, tiveram a consequência perversa do retardamento da progressão nas carreiras durante dezenas de anos dos funcionários que cá estavam e tão prejudicados foram? Portanto, que o funcionalismo público resolveu, no seu seio, problemas sociais gravíssimos que teriam atingido proporções inusitadas não tivesse sido um exemplar e profundo sentido patriótico e de sacrifício?

Já nos esquecemos de que uma grande maioria dos trabalhadores do sector público é bastante mais qualificada do que a restante, uma vez que é o Estado que tem de suprir os vencimentos de centenas de milhar de licenciados indispensáveis ao funcionamento da máquina? Médicos, professores, milhares e milhares de técnicos, engenheiros, veterinários, arquitectos, investigadores, juristas, magistrados, diplomatas, militares, etc, etc, repete-se, todos licenciados? E que, assim sendo, está claro que a média dos seus vencimentos é superior à do sector privado?

Num país marcado por uma incomensurável cultura de desleixo, em que o sector público, muito mais do que o privado, está sujeito a um escrutínio de inequívoca visibilidade, dá um jeito incrível generalizar e potenciar exponencialmente os sinais e sintomas menos positivos que, de facto, por todo o lado aparecem para que, bem explorados por «opinion makers» mal informados, mal intencionados e, nalguns casos, mesmo desonestos, sejam apresentados à comunidade como bodes expiatórios ideais.

Eis os funcionários da Administração Pública transformados em indefesa mas perfeita vítima. Eles, cujos vencimentos deveriam estar cobertos por verbas resultantes dos impostos – que, incompetentemente, a comunidade não consegue cobrar, porque o sector privado gera uma riqueza avaliada em ¼ do PIB que, em simultâneo, o mesmo sector privado subtrai ao fisco através dos canais da fraude e da economia paralela – são imolados no altar de uma comunicação social, lamentavelmente, tão deficiente, tão falha de profissionalismo que, entre nós, de maneira alguma, cumpre o papel de quarto poder que lhe está reservado nas sociedades democráticas.

Estamos mergulhados na cultura de promoção da mentira mais vil. Institucionalizou-se o escândalo e o descalabro. Claro que «programa» tão sinistro não é de agora, alguns políticos que bem conhecemos, perante o mais evidente silêncio dos cidadãos, nos trouxeram até tão baixo nível. Mas este governo bem pode orgulhar-se de tudo estar fazendo no sentido de promover as atitudes mais negativas e menos correctas, minando os mais nobres valores comunitários e inviabilizando o futuro. Que, para o efeito, também esteja a sobrecarregar os trabalhadores da função pública a um ponto absolutamente vergonhoso e aviltante, eis o que jamais deveria acontecer.

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