[sempre de acordo com a antiga ortografia]

terça-feira, 5 de março de 2013


Zweig, no 22 de Fevereiro

Faz hoje 71 anos que Stefan Zweig se suicidou. Lembro-me dele muita s, muitas vezes ao longo do ano e sempre neste dia. Nesta data, hesitei muito em transcrever algumas das suas im...pressões acerca de Montaigne. Depois, olhando para uma fotografia, mesmo aqui no meu escritório, de ‘As portas do Inferno’, peça inacabada que está na Kunsthaus de Zürich, ocorreu-me uma famosa passagem de” Die Welt von Gestern, Erinnerungen eines Europäers” em que Stefan Zweig descreve um seu encontro com Auguste Rodin, o autor daquele espantosa obra.

Pretendendo partilhar aquelas linhas convosco, socorri-me não do original mas da edição da Assírio & Avim que, na tradução para Português, aparece como “O Mundo de Ontem, recordações de um europeu”. Há muitas opções de Gabriela Fragoso, a tradutora, com as quais não concordo. Considero que a pontuação gráfica é altamente controversa, chegando mesmo a incomodar. Contudo, evita-me o trabalho de traduzir aquele que, no original alemão, é um formidável naco de prosa.

Ao transcrever estas páginas, em homenagem ao escritor austríaco que tanto frequento, fica a expressão da minha reserva acerca da tradução. No entanto, como compete, o respeito integral pela versão da editora.

Boa leitura!


“(…) Em casa de Rodin, as palavras ficaram-me presas na garganta e fiquei parado no meio das estátuas, como se fosse uma delas. Curiosamente, este meu embaraço parece ter-lhe agradado, pois quando nos despedimos, o ancião perguntou-me se eu não queria ver o seu verdadeiro atelier em Meudon, e convidou-me mesmo para a refeição. Estava dada a primeira lição: que os grandes homens são sempre os mais generosos.

A segunda lição mostrou que eles são também quase sempre os que levam uma vida mais simples. Na casa deste homem, cuja fama ecoava pelo mundo fora, cujas obras, linha a linha, eram tão familiares à nossa geração como os amigos mais chegados, comia-se tão frugalmente como na casa de um m´rdio agricultor; uma carne saborosa e nutritiva, algumas azeitonas e fruta à discrição, um vinho da terra vigoroso a acompanhar. Tudo isto me deu mais coragem, e no final já estava a conversar desembaraçadamente outra vez, como se há anos conhecesse aquele ancião e a sua mulher.

Terminada a refeição dirigimo-nos ao atelier. Era uma imensa sala que reunia as réplicas dos seus trabalhos mais representativos, mas pelo meio erguiam-se ou estavam caídos às centenas pequenos estudos preciosos – uma mão, um braço, uma crina de cavalo, uma orelha de mulher – modelados quase sempre só a gesso; ainda hoje conservo claramente na memória muitos desses esboços por ele concebidos apenas como exercício individual, e poderia falar horas a fio daquela única hora que vivi. Por fim, o mestre levou-me até um pedestal, sobre o qual se erguia, tapada com panos húmidos, a sua última obra: um busto de mulher. Com as pesadas mãos enrugadas de lavrador, soltou os panos e recuou. Inadvertidamente soltei um «admirable!» do peito comprimido e logo me envergonhei de tal banalidade. Mas com uma objectividade calma, onde não teria sido possível encontrar um grão de vaidade, limitou-se a concordar comigo, murmurando, enquanto contemplava a sua própria obra; «N’est-ce pas? Depois hesitou. «Só ali no ombro… Um momento!» Atirou com o casaco de andar por casa, vestiu a blusa branca, pegou numa espátula e, com um toque magistral, alisou no ombro aquela suave pele feminina que parecia viver e respirar. E recuou de novo. «E aqui também», murmurou. E novamente um ínfimo detalhe veio intensificar o efeito. Depois não voltou a falar. Avançava e recuava. Observava a figura reflectida num espelho, resmungava e emitia sons incompreensíveis, modificava, corrigia. O seu , amigavelmente distraído, lampejava estranhos clarões; parecia ter crescido e rejuvenescido. E ele trabalhava, trabalhava, trabalhava com toda a paixão e toda a energia do seu corpo pesado e poderoso; de cada vez que recuava ou avançava impetuosamente, o soalho estalava. Mas ele não ouvia. Não que reparava que, atrás de si, se encontrava um jovem silencioso, coração preso na garganta, felicíssimo por poder ficar a observar no seu trabalho um mestre tão excepcional. Tinha-se esquecido completamente de mim. Para ele, eu não estava ali. Só a figura, só a obra existia e, para lá dela, invisível, a visão da perfeição absoluta.

Assim decorreu um quarto de hora, uma meia hora, já não sei quanto tempo mais. Os grandes momentos estão sempre para lá do tempo. Rodin estava tão mergulhado, tão embrenhado no seu trabalho, que nem um trovão o teria despertado. Os seus movimentos toraram-se cada vez mais bruscos, quase irados; acometera-o uma espécie de ferocidade ou de ebriedade, trabalhava cada vez mais depressa. Até que as suas mãos foram ficando mais hesitantes. Pareciam ter reconhecido que já nada tinham para fazer. Ele recuou uma, duas, três vezes, sem alterar mais nada. A seguir murmurou qualquer c oisa em voz baixa por entre a barba, dispôs os panos em torno da figura, tão delicadamente como se passa um xaile pelos ombros de uma mulher amada. Respirou fundo, já calmo. A sua estatura parecia ter-se tornado outra vez mais pesada. O fogo extinguira-se. E então aconteceu o inacreditável, a grande lição: ele despiu a blusa, pegou outra vez no casaco de andar por casa e voltou-se para se ir embora. Naquela hora de suprema concentração, esquecera-se completamente de mim. Já não se lembrava que um jovem, que ele próprio conduzira a o atelier, para lhe mostrar o seu estúdio, tinha permanecido de pé atrás dele, comovido e de respiração suspensa, imóvel como as suas estátuas.

Aproximou-se da porta. Quando ia fechá-la à chave, descobriu que eu estava ali e fitou-me quase com ar zangado: quem era aquele jovem desconhecido que entrara à socapa no seu atelier? Mas no momento seguinte recordou-se e veio ter comigo, quase envergonhado. «Pardon, Monssieur», começou ele. Mas não o deixei continuar. Limitei-me a apertar-lhe a mão em sinal de gratidão: teria preferido beijá-la. Nessa hora tinha visto abrir-se diante de mim o mistério eterno de toda a grande arte e até mesmo de toda a capacidade humana: a concentração, a aliança de todas as energias, de todos os sentidos, o abstrair-se de si próprio, a abstracção do mundo que acompanha qualquer artista. Tinha acabado de aprender uma coisa para toda a a vida.
(…)”


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