[sempre de acordo com a antiga ortografia]

terça-feira, 5 de março de 2013



Grândola, Vila Morena,
hino da fraternidade


[Transcrição do texto publicado na edição de 20.02.2013 do 'Jornal de Sintra']


No passado dia 18, Relvas foi ao Clube dos Pensadores – dos pensadores, que ironia! – proferir umas quaisquer patacoadas e, a exemplo do que, depois do episódio da última sexta-feira no Parlamento, parece estar a fazer escola, foi interrompido de modo idêntico ao que aconteceu com o Primeiro Ministro. Desta vez, porém, os manifestantes que, cantando Grândola, Vila Morena, cortaram a palavra ao imponderável Ministro do Governo de Portugal, também não estiveram à altura da atitude que começaram por protagonizar.

De facto, quando Relvas se permitiu brincar, juntando-se a quem o contestava, também ele cantando o hino, deveriam ter tido o sangue frio de lhe replicarem que, na sua boca, Grândola, Vila Morena é um perfeito vitupério, um autêntico sacrilégio. Enquanto Passos Coelho considerou que tinha sido alvo de uma manifestação de bom gosto, Relvas foi desajeitado, devolvendo um gesto de manifesta incomodidade mascarada e ofensiva. No dia seguinte, já no ISCTE, mas ainda no ricochete da véspera, mesmo sem o hino da fraternidade, o ministro passou a maior das vergonhas.

Enfim, independentemente dos visados e dos protagonistas, ou muito me engano ou, a breve trecho, episódios como estes, no Parlamento em Lisboa, num clube do Norte do país, numa grande praça da capital espanhola, farão com que, pela sua força, Grândola, Vila Morena, que já tem um confirmado estatuto ibérico, se transforme no hino dos cidadãos europeus indignados. Aliás, não sei se sabem que foi no estrangeiro, em Santiago de Compostela, numa praça que hoje tem o nome de Zeca Afonso que Grândola foi cantada, pela primeira vez, em 1972.

Em Portugal, o hino adquiriu contornos bem diferentes dos do quadro de referência original de há umas dezenas de anos. Agora, em Democracia, o povo que mais ordena, parece acordar da letargia e canta a falta de qualidade da classe política emergente do pós Abril, nomeadamente, a do designado arco do poder.

Está podre, velha, gasta, já deu tudo o que tinha a dar essa classe política, que apenas se tem perpetuado numa nefasta e árida alternância de poder, mediante propostas de listas de candidatos a deputados, cada vez mais impreparados, mais incompetentes e mais reverentes às vozes dos respectivos donos, acabando eleitos, subvertendo e pervertendo mecanismos da Democracia que, nas livres eleições, tem um dos braços mais expressivos e emblemáticos.

Nestes termos, cumpre entender que, a montante de todas as movimentações que se possam surgir, o grande contributo para a decisiva mudança que se impõe, qual «mãe» de todas as soluções, resultará da luta pela elaboração e publicação de uma nova Lei Eleitoral. Lembrar o testamento de Zeca Afonso, gritar Grândola, Vila Morena no Parlamento de Lisboa, ou tem como objectivo este desígnio, que poderá conduzir à vigência de um novo dispositivo eleitoral propiciador de tal alteração ou, então, arrisca-se a não passar de atitude inconsistente.

Não se pode correr o risco de entrar num folclore de atitudes que arrisque ineficácia idêntica à da ida para a rua sem um programa cívico bem estruturado, fruto do indispensável trabalho de sapa em que, agora, com todo o empenho e visibilidade, é preciso investir.

[João cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]

 
 

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