Mozart, Requiem, Lachrimosa,
vale tudo?
Já não consigo localizar em que contexto aconteceu nem sequer identificar o autor da proeza. Sei que foi muito recentemente e, de certeza, no facebook. Fixei o episódio porque se relaciona com a utilização do conhecidíssimo segmento Lachrimosa, do Requiem em Ré menor, KV. 626 de Mozart, ao qual eu próprio acabara de recorrer quando, no passado dia 24 de Abril, tinha lembrado tratar-se da peça de referência de Khatia Buniatishvilli, jovem pianista que participará na próxima edição do Festival de Sintra.
Lamentavelmente, o protagonista do dislate agora partilhado, será alguém que, tanto desconhece as regras do bom senso e do bom gosto, como também ignora existirem implícitos limites deontológicos à utilização dos artefactos culturais que, de algum modo, pressuponha a sua descontextualização e articulação com realidades mais ou menos próximas do seu enquadramento original.
Permitindo-se extrair o mencionado Lachrimosa do contexto de uma obra máxima, não só da Música mas também de toda a cultura universal – peça que obedece ao Ordinário da Missa Católica de defuntos, que o católico e maçon Mozart não conseguiu terminar, nela tendo trabalhado no leito de morte – o «artista» deve ter achado imensa graça ao propor a sua audição subordinando-a a o título «A Lacrimosa do “divino” Mozart pelo desgoverno!!!» Como título, até é um bocado atabalhoado, apressado. Concluíu, precipitada e apressadamente, que, tratando-se de peça «fúnebre», poderia brincar com ela, afectando-a ao momento político actual…
Enfim, com o objectivo de não sofisticar demasiado o caso, até nem vou valorizar devidamente o facto de ter utilizado erradamente aquele inicial artigo definido feminino singular. É que não passa de mera insignificância se comparado com a ousadia de relacionar o Lachrimosa com o desgoverno da situação política em que nos encontramos, atitude que não pode deixar de se classificar como manifesta brincadeira de mau gosto…
Dispenso-me de entrar em detalhes sobre o Requiem, em geral, ou acerca do Lachrimosa em particular, neste caso de WAM. Quem sabe do que se trata, percebe perfeitamente que o mesmo escreveria eu se, por exemplo, se relacionasse com os de Bontempo, Verdi, Fauré ou Penderecki. Um parêntesis para um conselho. Se, por acaso, o autor da atitude vier a ler estas linhas e considerar que ainda será tempo para aprender alguma coisa sobre a obra-prima de Mozart, aconselharia a bibliografia mais afim de Robins Landon.
Espero bem não confundam esta minha opinião como contrária à iconoclastia. De modo algum! Com o iconoclasta, eu aprenderei sempre e até sou capaz de dar saltos no tempo. Mas, homens e mulheres livres que são, podem considerar que, ao contrário do que afirmei, não há qualquer deontologia, que são totalmente livres para usar, abusar e perverter todo e qualquer objectivo autoral, sem que se obriguem ao trabalho de acautelar interpretações ínvias.
Deixem que, no entanto, vinque bem a minha opinião de que o caso vertente, relativo à atitude de alguém que jamais será um iconoclasta, apenas teve a virtude de propiciar esta partilha de ideias que, assim queiram, pode continuar, aí desse lado…
Finalmente, ainda com o propósito de tornar presente, ou seja, recordar o carácter e ambiente da peça, eis uma gravação com proposta de uma tradução do texto para Inglês.
Boa audição!
http://youtu.be/JE2muDZksP4
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