[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quarta-feira, 15 de maio de 2013




Kathleen Ferrier,
o portento


 
Há precisamente oito dias, introduzindo a interpretação de Ferrier de um dos Kindertottenlieder de Gustav Mahler, perguntava eu se ainda se lembravam do que era uma voz de contralto. De facto, a sua é «a» voz de contralto, o paradigma a que podemos recorrer e, felizmente, confirmar através das gravações que nos deixou.

Para que se tenha uma pequena ideia do altíssimo gabarito de Ferrier no mundo da grande Música, basta lembrar que o «monstro sagrado» que foi o Maestro Bruno Walter afirmou que os maiores privilégios da sua vida tinham sido conhecer e trabalhar com Kathleen Ferrier e Gustav Mahler, precisamente por esta ordem.

Em apenas dez anos de carreira, Kathleen Ferrier (22.04.1912–8.10.1953), alcançou a maior reputação internacional, com um reportório que se estendia da canção folclórica às obras clássicas de Bach, Brahms, Elgar, Mahler ou Britten. No auge da fama, apenas com 42 anos de idade, viria a morrer de cancro da mama, numa altura em que as doenças de quem ocupava as luzes da ribalta não constituíam particular motivo de notícia, razão pela qual o seu tão precoce desaparecimento causou o maio choque.

Filha de mestre-escola de uma aldeia do Lancashire, evidenciou especiais dotes de pianista, tendo conquistado inúmeros prémios como artista amadora em concursos, ao mesmo tempo que trabalhava como telefonista. Só a partir de 1937, depois de ter vencido um prestigiado concurso de canto do Festival de Carlisle, começou a receber convites para compromissos de carácter profissional.

Estudou canto com J.E. Hutchinson e, mais tarde, Roy Henderson e, depois do início da Segunda Grande Guerra, foi contratada pelo Council for the Encouragement of Music and the Arts (CEMA), tendo realizado concertos e recitais por toda a Inglaterra. Em 1942, Malcom Sargent recomendou-a à Ibbs and Tillett, uma das mais influentes agências de artistas, tendo-se tornado presença permanente nos eventos principais, participando também em inúmeras emissões de rádio da BBC.

Em 1946, apresentou-se no Festival de Glyndebourne Festival na estreia da opera The Rape of Lucretia de Benjamin Britten. Um ano depois apareceria, pela primeira vez, como Orfeo, em Orfeo ed Euridice de Gluck, obra à qual ficaria indelevelmente ligada. Estabeleceu as mais fortes relações profissionais com figuras máximas do mundo musical, tais como Britten, Sir John Barbirolli, Bruno Walter ou Gerald Moore. Duas viagens aos Estados Unidos, entre 1948 e 1950, bem como concertos por toda a Europa tornaram-na famosa.

Infelizmente, em Março de 1951, ser-lhe-ia diagnosticado cancro da mama. Períodos de hospitalização e convalescença não a impediram de continuar a actuar e fazer gravações, registando-se a sua última subida ao palco, oito meses antes da morte, em Fevereiro de 1953, como Orfeo na Royal Opera House. 

 Em sua homenagem, logo em Maio de 1954, foi fundado o Kathleen Ferrier Cancer Research Fund e, desde 1956, o Kathleen Ferrier Scholarship Fund, administrado pela Royal Philharmonic Society, vem atribuindo prémios e bolsas anuais a jovens cantores com carreiras profissionais promissoras.

Como já devem ter calculado, para mim, Kathleen Ferrier é uma das referências máximas do canto lírico de todos os tempos. Ainda ontem, conversando com o meu querido amigo, Dr. José Luís Carvalho Cardoso - pessoa respeitadíssima no meio musical, por exemplo, fundador e Presidente do Círculo Richard Wagner de Lisboa - coincidíamos na certeza, em que também radica a opinião de outros distintos melómanos, de que, passados tantos anos, Ferrier continua inultrapassável.

Em especial homenagem ao Dr. Carvalho Cardoso, que tenho como diário leitor dos meus textos - e lembrando um particular momento do nosso tão interessante diálogo - aqui trago esta voz sublime na interpretação do papel que a celebrizou. Trata-se de uma versão reduzida em que, além de Ferrier, no Orfeo, Ann Ayars faz a Euridice e Zoe Vlachopoulos  Amore. O Coro é o do Festival de Glyndebourne, Fritz Stiedry dirige a Southern Philharmonic Orchestra.

Boa audição!

http://youtu.be/kxkqAeN4RVk
 

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