[sempre de acordo com a antiga ortografia]

domingo, 26 de maio de 2013




Shakespeare,
perene inspiração
 

[texto parcialmente adaptado do artigo publicado na edição de 24 de Maio de 2013 do Jornal de Sintra]


Como não poderia deixar de suceder, por via da nossa opção pelos estudos filológicos inerentes às culturas anglo-saxónica e germânica, minha mulher, eu e tantos dos nossos amigos e conhecidos que fizeram o mesmo caminho de estudos académicos, consideramos que jamais as nossas cabeças pensariam como o fazem se, em Shakespeare, não tivéssemos radicado muitos dos paradigmas que estruturam uma maneira de ser, de estar e de ver o mundo.

Pelos nossos dezoito anos, fomos levados a ler a grande maioria da obra do dramaturgo inglês, no original, edição da Collins, com introdução e glossário do Prof. Peter Alexander, Em muitos casos, felizmente, o que fizemos foi reler tragédias, comédias e peças históricas que, até essa altura, já havíamos lido em traduções para Português ou Francês, língua esta que, para muitos jovens da minha geração, funcionava como segunda língua, desde a infância, língua de acesso a obras literárias cuja tradução portuguesa ou não era de boa qualidade ou, pura e simplesmente, não existia.

Era tão cuidada a nossa formação académica no que respeitava a obra de Shakespeare que causava admiração quando, por vezes, em conversas no estrangeiro, em meio universitário ou outro, na própria Inglaterra, alguns dos nossos interlocutores se apercebiam de que tínhamos lido as peças integralmente - não excertos, como em tantas universidades europeias acontecia e acontece - e que tínhamos acedido a estudos críticos do maior gabarito. Shakespeare, na Faculdade de Letras de Lisboa, era a sério. Claro que também é possível levar a brincar as coisas mais sérias. Mas isso é outra história que aqui não cabe…

Muita dessa seriedade, que aqui expresso como um tributo à formação e informação que tive o privilégio de aceder, também estava plasmada em produções cinematográficas esplêndidas, muitas transmitidas pela RTP nos anos sessenta, outras através de sessões que, há cerca de cinquenta anos, o British Council promovia, entre outros, igualmente com o objectivo de que pudessem visioná-los os estudantes da Faculdade de Letras de Lisboa, tantas vezes alunos de Leitores de Inglês que também ali trabalhavam.*

Shakespeare, a sua proclamada, reconhecida e justa universalidade. Na História da Cultura Ocidental, em especial depois do Renascimento, muito dificilmente se encontraria outro vulto das Artes e das Letras cuja produção tivesse inspirado tantos poetas, pensadores e artistas, de todas as áreas. E, tão somente, ao nível das traduções para a nossa língua, como não lembrar as que fizeram homens tão diferentes mas igualmente fascinantes como, por exemplo, o nosso Rei D. Luís, de Hamlet, The Merchant of Venice, Richard III, e Othello, the Moor of Venice ou o Dr, Álvaro Cunhal, de King Lear?

É certamente por tudo isto e muito mais que, com tanta frequência, ao folhear compêndios de História das Artes, da Literatura, da Filosofia, deparamos com testemunhos de figuras de proa da vida cultural, de todos os quadrantes ideológicos, de acordo com os quais a obra shakespeariana ocupa, em todas as vertentes de análise, um espaço matricial na formação do seu pensamento individual.

É impressionante a galeria de personagens criadas por Shakespeare (1564-1616). Porém, verdadeiramente surpreendente é o carácter universalista dessas criações únicas e, no domínio da caracterização, a imensa quantidade de estudos de psicologia que têm como objecto essa série interminável de ‘dramatis personae’ de toda a lavra do autor de Stratford-upon-Avon.

Pois bem, se tal acontece, é porque os seus traços característicos, em todos os matizes, atingem o paradigma da absoluta diversidade na unidade. Mais, essa evidência não pode deixar de radicar na circunstância de o autor se revelar um ímpar conhecedor do comportamento humano, um «psicólogo» ‘avant la lettre’, em todas as situações, na paz ou em conflito, em todos os enquadramentos, estratos e estatutos sociais, em ambientes rurais e urbanos, ficcionais, mitológicos.

E, se alguma dúvida subsistisse acerca deste ponto, bastaria ter em consideração o próprio Sigmund Freud que, como sabemos, ao longo de anos, se manifestou tão fascinado como perplexo perante o fenómeno Shakespeare, dificilmente aceitando que fosse o real autor da monumental obra que tem assombrado os maiores génios destes últimos séculos. Apenas a título de referência sumária, recorde-se que Freud atribuiria a verdadeira autoria das obras de William Shakespeare a Edward de Vere, 17º Conde de Oxford, teoria esta de que viria a abdicar parcialmente.

No que respeita a Carl Jung, a outra grande figura máxima da Psicologia, também não faltam estudos sobre as tragédias e comédias de Shakespeare à luz da sua perspectiva de abordagem**. E, se não ficarmos por estes gigantes e nos lembrarmos de que outros grandes mestres como Thomas Ogden ou Michel Foucault, só neste particular aspecto da psicologia ‘sticto sensu’, dedicam tanto do seu labor e atenção ao mesmo universo dramatúrgico, teremos de render-nos à evidência de que estamos perante um caso que, eventualmente, só tenha paralelo em Leon Tolstoi.

Não surpreende, portanto, que neste temporada de 2012/2013, em que a sua Orquestra comemora o jubilar cinquentenário da estreia, a Fundação Calouste Gulbenkian tenha decidido integrar um ciclo de quatro concertos, também envolvendo o Coro, propondo obras de compositores que se socorreram de peças de William Skakespeare para a sua concepção.

Para o efeito, durante o corrente mês de Maio, de Hector Berlioz (1813-1869), já tivemos Romeu e Julieta, Sinfonia dramática sobre a tragédia de Shakespeare, op. 17, nos dias 9 e 10; de Felix Mendelssohn-Bartholdy (1809-1847), A Midsummer Night’s Dream, música de cena, em 16 e 17, e de Giusseppe Verdi (1813-1901), Falstaff, em versão semi-encenada, nos dias 23e 24 e, para finalizar, a 30, com Otello, em versão concertante, que repetirá em 2 de Junho.

Em diferentes fases do pleno período romântico em que viveram e trabalharam, também eles se deixaram prender por estímulos tão apelativos como os do legado do grande mestre isabelino. A nós, herdeiros de tão espectacular conjunto de artefactos culturais, apenas nos compete estar atentos e, se possível, usufruir de ensejos tão auspiciosos. ___________________________________________________________

* Para que, hoje em dia, se possa ter uma ideia do que era o ‘elitista’ ensino de então, lembrarei que, ainda no meu quinto ano do liceu, a professora de Inglês, Dra. Maria Helena Dá Mesquita, levava a minha turma ao British Council para ver uma adaptação ao cinema de The Importance of being Earnest de Oscar Wilde, que tínhamos lido nas aulas. É verdade, em 1963, alunos do Liceu D. João de Castro, conseguiam ver, entender e comentar um filme Inglês, sem legendas… Verifiquei agora ser dirigido por Anthony Asquith e interpretado por Michael Denison, Michael Redgrave, Dame Edith Evans, Dorothy Tutin, Joan Greenwood, e Margaret Rutherford.

**Apenas a título de exemplo, o interessantíssimo estudo Jung's Advice to the Players: A Jungian Reading of Shakespeare's Problem Plays, por Sally F. Porterfield, ed. Greenwood Press, Westport, 1994.

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Para uma sessão de quase três horas, gostaria de vos propor o visionamento de Henry the Eighth, peça de WS adaptada ao cinema, da colecção da BBC, filme realizado por Kevin Billington, com banda sonora de James Tyler.

Bom visionamento!


http://youtu.be/lZffDb4vLSE
 

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