SINTRA, ABSTENÇÕES
[Transcrição do artigo publicado na edição de hoje do 'Jornal de Sintra'.]
A Democracia é um regime de enorme exigência de exercício da cidadania que, entre outras atitudes, por parte dos eleitores, se traduz no constante escrutínio da actividade dos eleitos. Daí que, reduzir a vida democrática e o inerente exercício da cidadania às periódicas consultas eleitorais – como acontece entre nós, aliás, cada vez menos participadas… – não pode deixar de resultar num processo de empobrecimento cívico, nos termos do qual é a própria Democracia que se compromete, através dos mecanismos propícios à sua subversão.
Naturalmente, os baixos índices socioeconómicos, fenómenos endémicos e geracionais como o analfabetismo e a iliteracia, infelizmente ainda tão presentes na comunidade nacional, bem como os ínfimos consumos culturais, a incapacidade da leitura e interpretação dos acontecimentos, fragilizam o cidadão, impedem-no de ser agente e actor da mudança que, de qualquer modo, está a acontecer à sua volta, para a qual não dispõe dos «argumentos» e instrumentos que qualquer europeu deverá dominar.
Este é o quadro de referência propício à proliferação de toda a casta de habilidosos, tão comuns na desqualificada classe política que, «no arco do poder», e, em alternância, tem assumido a governação do país, em todas as instâncias. Neste contexto, como não entender o desinteresse dos cidadãos?
Quem pode manifestar surpresa perante os assustadores e preocupantes números da abstenção que, em todo o país, sem grandes diferenças de região para região, se têm verificado nos anteriores actos eleitorais? Apenas a título de referência e, para que não nos afastemos da crua e dura realidade, lembremos que, nas últimas consultas eleitorais autárquicas em Sintra, quer em 2005 quer há quatro anos, a abstenção rondou os 45%!
Dir-me-ão que a abstenção é um fenómeno geral, não especificamente português. Não deixando de ser verdade, no entanto, a abstenção não é atitude que, entre nós, esteja circunscrita aos actos eleitorais. Assim não é porque, em geral, devido a uma série de factores muito pertinentes, alguns dos quais supra referidos, os cidadãos portugueses, se pautam pela ausência do exercício da cidadania.
Por outras palavras e, em conclusão, pura e simplesmente, demitem-se, não participam, ou seja, são abstencionistas sistemáticos. Daí que, cada vez mais, com natural apreensão, analistas e comentadores, venham perspectivando a hipótese de uma grande abstenção, a nível nacional, no próximo dia 29.
Porque, efectivamente, uma expressiva percentagem de cidadãos está cada vez mais habituada a um refúgio na ausência ou, se quiserem, acostumada às mais diversas faltas de comparência. Eleições? Não ir, não ligar, também por flagrante desmotivação, para a qual tanto têm contribuído os decisores políticos oportunamente eleitos, eis a informal generalização do estar a marimbar-se para as eleições ou, cotejando a infelicíssima expressão de «um conhecido político», a consumada prova de que se lixam para as eleições…
A abstenção, acto perfeitamente negligente e gratuito, em nada, absolutamente nada, contribui para qualquer evolução na comunidade local ou nacional. Natural e logicamente, fornece sinais cuja interpretação compete a especialistas que, invariavelmente, não chegam a conclusões, limitando-se a aventar hipóteses de enquadramento, de acordo com consabidas e desgastadas grelhas de análise.
Outra abstenção…
Ainda a talhe de foice, uma outra forma de abstenção que coincide com um comportamento de demissão extremamente lesivo dos grandes objectivos da Democracia. Refiro-me aos cidadãos eleitos que, investidos do poder delegado através do voto dos eleitores, se demitem, se abstêm do exercício da autoridade democrática que lhes foi confiada, para a resolução de questões em que, doa a quem doer, está em causa o bem comum e, portanto, os superiores interesses da comunidade.
E, ao aludir a esta perspectiva do exercício da autoridade democrática, naturalmente, estou a pensar em problemas tão comezinhos como essa coisa civilizada que é fazer cumprir as disposições legais vigentes, sem qualquer margem para a intervenção de um factor tão pernicioso para o saudável exercício do civismo e da cidadania, ou seja, daquilo que não passando de militante cultura de desleixo, tão erradamente, se confunde com uma famigerada forma de tolerância.
Quando a Literatura intervém
Final e naturalmente, a propósito de abstenções, logo ocorre Ensaio sobre a Lucidez, a obra de José Saramago cuja primeira edição data de 2004. É o que é, fundamentalmente, um artefacto de Literatura, algo que o autor reivindicava, com a maior veemência, quando confrontado com a polémica que suscitara o protagonismo do voto branco. Gostaria de lembrar algumas das palavras do autor durante a apresentação do livro, no Centro de Congressos de Lisboa, perante milhares de pessoas, com um debate moderado por José Manuel Mendes, e que contou a presença de José Barata Moura, Mário Soares e Marcelo Rebelo de Sousa.
“Estou contra o sistema que nos governa e consegui encontrar o instrumento por excelência de contestação: o voto em branco.(…) O voto em branco é uma arma democrática que possuímos para impedir os políticos de continuarem a brincar connosco. (…) O “Ensaio sobre a Lucidez“ toca um assunto que não é tabu, mas tem que ver com o exercício cívico de voto e suas consequências. Como acontece com tudo o que está à vista, acabamos por não ver" essas consequências.”
Em véspera de acto eleitoral, ler ou reler aquela obra de Saramago ou as exemplares páginas de Júlio Dinis em A Morgadinha dos Canaviais, que tão presente tem a questão das eleições, eis o convite que me apraz propor a todos quantos possam aceder a tal patamar de convívio com a arte literária. Aproveitar a circunstância para o enriquecimento cultural, eis um inegável exercício de lucidez.
[JoãoCachado escreve de acordo com a antiga ortografia]
Naturalmente, os baixos índices socioeconómicos, fenómenos endémicos e geracionais como o analfabetismo e a iliteracia, infelizmente ainda tão presentes na comunidade nacional, bem como os ínfimos consumos culturais, a incapacidade da leitura e interpretação dos acontecimentos, fragilizam o cidadão, impedem-no de ser agente e actor da mudança que, de qualquer modo, está a acontecer à sua volta, para a qual não dispõe dos «argumentos» e instrumentos que qualquer europeu deverá dominar.
Este é o quadro de referência propício à proliferação de toda a casta de habilidosos, tão comuns na desqualificada classe política que, «no arco do poder», e, em alternância, tem assumido a governação do país, em todas as instâncias. Neste contexto, como não entender o desinteresse dos cidadãos?
Quem pode manifestar surpresa perante os assustadores e preocupantes números da abstenção que, em todo o país, sem grandes diferenças de região para região, se têm verificado nos anteriores actos eleitorais? Apenas a título de referência e, para que não nos afastemos da crua e dura realidade, lembremos que, nas últimas consultas eleitorais autárquicas em Sintra, quer em 2005 quer há quatro anos, a abstenção rondou os 45%!
Dir-me-ão que a abstenção é um fenómeno geral, não especificamente português. Não deixando de ser verdade, no entanto, a abstenção não é atitude que, entre nós, esteja circunscrita aos actos eleitorais. Assim não é porque, em geral, devido a uma série de factores muito pertinentes, alguns dos quais supra referidos, os cidadãos portugueses, se pautam pela ausência do exercício da cidadania.
Por outras palavras e, em conclusão, pura e simplesmente, demitem-se, não participam, ou seja, são abstencionistas sistemáticos. Daí que, cada vez mais, com natural apreensão, analistas e comentadores, venham perspectivando a hipótese de uma grande abstenção, a nível nacional, no próximo dia 29.
Porque, efectivamente, uma expressiva percentagem de cidadãos está cada vez mais habituada a um refúgio na ausência ou, se quiserem, acostumada às mais diversas faltas de comparência. Eleições? Não ir, não ligar, também por flagrante desmotivação, para a qual tanto têm contribuído os decisores políticos oportunamente eleitos, eis a informal generalização do estar a marimbar-se para as eleições ou, cotejando a infelicíssima expressão de «um conhecido político», a consumada prova de que se lixam para as eleições…
A abstenção, acto perfeitamente negligente e gratuito, em nada, absolutamente nada, contribui para qualquer evolução na comunidade local ou nacional. Natural e logicamente, fornece sinais cuja interpretação compete a especialistas que, invariavelmente, não chegam a conclusões, limitando-se a aventar hipóteses de enquadramento, de acordo com consabidas e desgastadas grelhas de análise.
Outra abstenção…
Ainda a talhe de foice, uma outra forma de abstenção que coincide com um comportamento de demissão extremamente lesivo dos grandes objectivos da Democracia. Refiro-me aos cidadãos eleitos que, investidos do poder delegado através do voto dos eleitores, se demitem, se abstêm do exercício da autoridade democrática que lhes foi confiada, para a resolução de questões em que, doa a quem doer, está em causa o bem comum e, portanto, os superiores interesses da comunidade.
E, ao aludir a esta perspectiva do exercício da autoridade democrática, naturalmente, estou a pensar em problemas tão comezinhos como essa coisa civilizada que é fazer cumprir as disposições legais vigentes, sem qualquer margem para a intervenção de um factor tão pernicioso para o saudável exercício do civismo e da cidadania, ou seja, daquilo que não passando de militante cultura de desleixo, tão erradamente, se confunde com uma famigerada forma de tolerância.
Quando a Literatura intervém
Final e naturalmente, a propósito de abstenções, logo ocorre Ensaio sobre a Lucidez, a obra de José Saramago cuja primeira edição data de 2004. É o que é, fundamentalmente, um artefacto de Literatura, algo que o autor reivindicava, com a maior veemência, quando confrontado com a polémica que suscitara o protagonismo do voto branco. Gostaria de lembrar algumas das palavras do autor durante a apresentação do livro, no Centro de Congressos de Lisboa, perante milhares de pessoas, com um debate moderado por José Manuel Mendes, e que contou a presença de José Barata Moura, Mário Soares e Marcelo Rebelo de Sousa.
“Estou contra o sistema que nos governa e consegui encontrar o instrumento por excelência de contestação: o voto em branco.(…) O voto em branco é uma arma democrática que possuímos para impedir os políticos de continuarem a brincar connosco. (…) O “Ensaio sobre a Lucidez“ toca um assunto que não é tabu, mas tem que ver com o exercício cívico de voto e suas consequências. Como acontece com tudo o que está à vista, acabamos por não ver" essas consequências.”
Em véspera de acto eleitoral, ler ou reler aquela obra de Saramago ou as exemplares páginas de Júlio Dinis em A Morgadinha dos Canaviais, que tão presente tem a questão das eleições, eis o convite que me apraz propor a todos quantos possam aceder a tal patamar de convívio com a arte literária. Aproveitar a circunstância para o enriquecimento cultural, eis um inegável exercício de lucidez.
[JoãoCachado escreve de acordo com a antiga ortografia]
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