[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sábado, 16 de novembro de 2013


Sintra, Jorge de Mello
e a Fonte Mourisca



Como sabem, morreu recentemente Jorge de Mello, um homem que amava Sintra entranhadamente. Grande empresário, neto e co-herdeiro do império industrial fundado pelo avô, Alfredo da Silva, alargado pelo pai, D. Manuel de Mello (Cartaxo) e aumentado por ele próprio e por seu irmão, José Manuel de Mello, pois, também em Sintra, Jorge de Mello sofreu alguns ataques ao bom nome a que tinha direito.
 

Há pouco mais de ano e meio, tive oportunidade de desfazer um equívoco acerca de famoso caso, em que o seu nome aparecia ligado a um pretenso crime de desvio de um bem patrimonial muito conhecido, devido ao local de muita passagem onde foi implantado.

Aqui vo-lo trago novamente, não só porque vem a propósito, pela circunstância da morte de Jorge de Mello, mas também pelo manifesto exemplo de fabricação de uma historieta, tão bem embrulhada, que foi capaz de induzir em grosseiro erro um conhecido escritor e professor. Faço-o, mais uma vez, com o objectivo de recordar o homem que, afinal, tanto apreciava esta terra.

Em Sintra, melhor fora se honrasse a sua memória, por exemplo, fazendo jus a uma dádiva que foi objecto de notícia do 'Jornal de Sintra' publicada em 29 de Novembro de 1969: "(...) O Dr. Jorge de Mello (...) ofereceu um terreno (no valor de 1.167.000 escudos) para a construção do novo Hospital de Sintra", situado no Vale de S. Martinho, entre o cemitério de S. Marçal e a povoação de Lourel (...)", conforme registo de Fernando Castelo no seu blogue 'Retalhos de Sintra' no passado dia 11 do corrente.

Então, passo à transcrição do meu artigo, também publicado no mesmo jornal em 13.04.12.

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Fonte Mourisca,
uma história mal contada


“(…) A história mais espantosa é a da fonte árabe, que agora está aqui. Os senhores Mello pegaram na fonte e levaram-na para a Quinta da Ribafria. Faltava lá uma fonte bonita… Levaram-na, com a alegação de que precisava de recuperação e, como a Câmara não tinha dinheiro e eles tinham, recuperam-na no seu palácio particular e ficam com ela. Só depois do 25 de Abril é que voltou para aqui. (…)”

[Miguel Real 'Somos portugueses – e depois?' Nº 992 da Revista Visão, 8 de Março de 2012]

Desta vez, lamentavelmente, coube a Miguel Real a desdita de cair na armadilha oportunamente urdida por incógnita gente que, convenhamos, sem grande imaginação, misturou alguns factos com falsidades resultantes da mais evidente efabulação, fazendo circular como real e verdadeira a história citada na epígrafe que, só aparentemente, tem todos os ingredientes de plausibilidade e verosimilhança.

Enfim, tendo-me munido de provas inequívocas da realidade dos factos, julgo ser tempo de repor a verdade dos episódios inerentes à trasladação da designada Fonte Mourisca. Manda a verdade que assim o faça, objectivo este ainda mais justificado por ter sido Miguel Real – que tantas e sobejas provas de apego à verdade tem manifestado – afinal, quem acabou por dar azo à adequação do conhecido provérbio no melhor pano cai a nódoa…

Feita a justa ressalva e libertando Miguel Real de qualquer responsabilidade na propalação de uma mentira que, ao longo de dezenas de anos, tem feito caminho e evitáveis estragos, passemos aos factos. Entre 1922 – data em que foi edificada, a partir de um projecto de pendor revivalista, da autoria de Mestre José da Fonseca* – e 1960, a citada Fonte Mourisca, esteve instalada, sensivelmente, no local onde, rematando a descendente Rua Visconde de Monserrate, na curva de acesso à Volta do Duche, hoje se encontra o chafariz fronteiro ao edifício onde funcionou o antigo quartel dos bombeiros, actual Museu do Brinquedo.

Ora bem, naquele citado ano de 1960, a Câmara Municipal de Sintra, sob a presidência do Prof. Joaquim Fontes, adjudicou os trabalhos de construção do tal chafariz, substituto da fonte em apreço, a Alfredo da Silva Ventura, ao tempo, um dos mais conhecidos e conceituados empresários sintrenses da construção civil. Para cabal entendimento da questão, cumpre assinalar que, para todos os efeitos, no contexto da concretização daquela obra e nos termos da prática então vigente, os materiais constantes da fonte apeada pelo empreiteiro passaram a propriedade sua.

Subsequentemente, com o intuito de preservar as peças que, entretanto, nos termos referidos, já eram do seu património pessoal, o Sr. Alfredo da Silva Ventura fê-las depositar numa sua pedreira, nas imediações da Capela de Santo Amaro, relativamente próximo da Quinta de Ribafria, pedreira aquela onde permaneceram sem que dano algum as tivesse molestado.

Passados cerca de vinte anos, o Vereador dos Serviços Culturais, Brigadeiro Machado de Souza, através do ofício 12704, datado de 25 de Julho de 1980 – cuja fotocópia, na sequência de investigação muito sumária, tenho em meu poder – dá conhecimento ao Sr. Ventura da intenção de a Câmara Municipal reaver a fonte, mostrando-se interessado em iniciar conversações.

A resposta seguiu célere. Datada de 4 de Agosto, logo no primeiro parágrafo e sem quaisquer condições, a carta do Sr. Alfredo Ventura informa “(…) ser com o maior prazer que coloco à disposição da Exma. Câmara Municipal de Sintra a Fonte Mourisca (…)”. Para que se ateste da nobreza de intenções daquele senhor, não resisto à transcrição do terceiro parágrafo da missiva:

“(…) Embora tendo tido muitas ofertas, sempre me recusei a vender esta Fonte, alimentando sempre a esperança de que um dia a poderia ver novamente colocada na Vila de Sintra e, porque assim é, não imponho a V. Exa. ou à Exma. Câmara quaisquer condições, mas, porque a minha idade já vai avançada (75 anos), muito honrado me sentiria, como verdadeiro Sintrense que sempre fui, e sempre serei, se V. Exa., em minha vida, se dignasse conceder-me tal satisfação. (…)”

E a verdade é que nem uma pedra faltou! Nesta história, em que os Mello jamais interferem, é o Sr. Alfredo Ventura, isso sim, quem intervém na condição de oportuno benemérito, acabando por devolver à comunidade um interessante bem patrimonial, sem que nada o obrigasse a gesto tão altruísta. O resto é do conhecimento geral. Infelizmente, em 1982, com a reposição da peça, ninguém achou por bem que, igualmente, se impunha repor a verdade dos factos.

Finalmente, com algum natural desapontamento, não posso deixar de registar que, durante tantos anos, uma descarada mentira tivesse andado de boca em boca, conspurcando um episódio com evidentes contornos de dignidade, nobreza de carácter e de amor a esta terra. Sintra bem merece todo o cuidado quando se trata de relatar o seu passado recente ou remoto. Isso se esperaria, afinal, dos historiadores locais que, infelizmente, no caso vertente, parece terem andado algo distraídos…

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*A propósito, lembrarei que, da autoria do mesmo mestre escultor e canteiro, são a Fonte dos Pisões, o Monumento ao Soldado Desconhecido, na Correnteza, o conjunto escultórico de homenagem ao Dr. Gregório de Almeida, também na Volta do Duche, e a cópia do Pelourinho manuelino, junto à igreja da Misericórdia.

 
 

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