Sintra,
Tolerância? - A quanto obrigas…
[Transcrição do artigo publicado no Jornal de Sintra, edição de 15.11.2013]
Por se tratar de matéria relacionada com a conjugação de
princípios e valores muito caros à vivência da Democracia, nenhum texto a
propósito pode ser inócuo. De qualquer modo, procurarei manter a atitude de sempre,
ou seja, a de recusar qualquer manifesto de contundência que, ferindo
susceptibilidades, prejudique o acolhimento da mensagem e inviabilize a
reflexão que se impõe.
No entanto, para efeitos da economia e pretendida
eficácia deste texto, desde logo se me afigura indispensável especificar a
noção de exercício de autoridade
democrática que me interessa discorrer e partilhar com os leitores. Para
que não subsista qualquer equívoco, apenas me referirei a alguns casos cuja
matriz de incidência radica na articulação com a prática da designada «tolerância».
E, continuando na tentativa de explicitação, convém que
nos entendamos quanto à acepção em que, com tanta frequência, é conjugado
aquele conceito, sugestivamente registado entre aspas. Se o acto de tolerar, isto
é, stricto sensu, a tendência a
admitir, nos outros, maneiras de pensar, de sentir e de agir diferentes ou
mesmo diametralmente opostas às nossas, que, em si, evidencia sobeja prova de
nobreza e abertura de espírito, já o seu entendimento como facilitador do
incurso em atitudes lesivas dos interesses de terceiros, é coisa perfeitamente
repudiável.
Ainda neste preâmbulo de esclarecimento do contexto, estou
em crer que muito do descrédito em que tem caído a classe política – de todo o
espectro partidário, tanto no todo nacional como no local, suscitando o
flagrante desinteresse quando não o mais evidente repúdio dos cidadãos em
relação à gestão da coisa pública, bem patente na altíssima percentagem da
abstenção verificada nas últimas eleições autárquicas – radica na dificuldade
que, precisamente, os autarcas têm demonstrado no exercício da autorIdade
democrática no contexto dos mandatos para que foram eleitos através
do voto popular.
Ora bem, chegado o momento de focar a atenção no concreto
quotidiano da comunidade sintrense, bastará trazer à colação duas questões cuja
abordagem, mesmo muito sucinta, imediata e copiosamente comprova a pertinência
do que venho expressando. Naturalmente, em simultâneo, bem demonstram como a
falta ou o deficiente exercício da autoridade democrática, em articulação com
um entendimento menos consentâneo do conceito de tolerância, acabam por
resultar em prejuízo da qualidade de vida.
Casos bem concretos
Apenas dois
problemas, ambos no domínio do estacionamento. Primeiramente, o de viaturas
particulares e autocarros de turismo, bem como o subsequente acesso ao centro
histórico, aos pontos altos da Serra e outros lugares do comércio e serviços na
sede do concelho. Seguidamente, a inexistência de uma área de parqueamento de
autocaravanas, meio de transporte de turismo que, cada vez mais, coloca os mais
sérios problemas aos destinos turísticos.
Há décadas por resolver, é sabido que o primeiro pressupõe
uma estratégia integrada de resolução. É neste sentido que, por exemplo, a
instalação dos parques dissuasores periféricos e requalificação de bolsas de
estacionamento, hão-de articular-se com as soluções equacionadas para outras importantes
questões, como a redefinição da rede dos transportes públicos, controlo dos
fluxos de trânsito – com o inevitável encerramento, nuns casos periódico,
noutros definitivo, de determinadas vias – ou a escrupulosa observância de um
absolutamente civilizado regime de cargas e descargas, etc.
Naturalmente, enquanto não forem adoptadas, decididas e
concretizadas as medidas correspondentes ao anterior enunciado, a vida tem de
continuar, mas, atenção, como é suposto, sem colidir com normas vigentes em
dispositivos legais, como o Código da Estrada, que determina e condiciona o
comportamento dos cidadãos condutores, impedindo-os de fazerem das vias de
circulação os parques de estacionamento que mais jeito lhes dão...
Quanto às autocaravanas, a situação é tão preocupante
quanto caricata a solução que tem vigorado,
em pleno centro histórico, a escassa centena de metros dos Paços do Concelho,
na zona do Rio do Porto. A foto remonta a Agosto e já ilustrava um artigo que
subscrevi, também publicado aqui no JS,
em 1 de Setembro de 2006. Nada, nada se alterou e, de facto, como toda a gente
sabe, só tem aumentado a procura. Parece que não se está mal, a cena
demonstra-o, pois há quem abanque entre dois veículos e até já tenho visto
roupa estendida… Problemas de higiene pública e de segurança de pessoas e bens,
a tudo se fecha os olhos.
A realidade é que, muito simplesmente, têm sido os
próprios autarcas que, perante a própria impossibilidade de resolução, induzem
à autoridade policial – igualmente incapacitada por dificuldades de toda a
ordem – uma atitude de «tolerância» perante
a prevaricação individual. E, assim, são os próprios eleitos que põe em
causa o interesse comum, o interesse dos eleitores que neles delegaram o poder
para o exercício da autoridade, uma autoridade que é decorrente do mais
significativo dos actos democráticos, no contexto de eleições, num Estado
Democrático de Direito.
Enfim, sem qualquer ponta de moralismo, parece ser tempo
de acabar com esta perversa «tolerância» que, perante a nossa implícita
aquiescência e condescendência, se transformou num dos piores inimigos, nela em
que também radica a matriz da designada cultura
do desleixo, expressão tão feliz de Jorge Sampaio, um dos mais ilustres
sintrenses.
[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]
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