[Salzburg, 01.02.2014 (1)]
Hoje é dia de termos novo e último concerto com a Orquestra Filarmónica de Viena. Desta vez será Daniel Barenboim quem dirigirá o extraordinário programa que compreende, nem mais nem menos, do que a interpretação das três últimas sinfonias de Mozart. A propósito, não deixarei de lembrar que, muito recentemente, tivemos idêntica proposta por parte da Orquestra Gulbenkian que, com o Maestro Paul McCreesh, tão boa prova evidenciou da sua capacidade para se abalançar a tão desafiante iniciativa.
Na Mozartwoche de 2013, também Sir Simon Rattle se apresentou com a Orchestra of the Age of Enlightenment para o mesmo programa. Lembrar-se-ão, aqueles que me costumam seguir nestas andanças, de que colhi a melhor das impressões, em especial da Sinfonia em Sol menor, KV. 550ª, a celebérrima no. 40.
Para hoje, se quiserem fazer uma preparação mínima das audições que, não podendo estar aqui comigo, também vos proporei, pois deixo-vos com textos que, se bem se lembram, escrevi e publiquei durante o ano de 2012 sobre o legado sinfónico completo de Wolfgang Mozart. Primeiramente, uma introdução à tríade, e, logo de seguida, uma «folha de sala» para cada sinfonia.
Boa leitura e boa audição!
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Mozart,
o milagroso tríptico sinfónico
O cúmulo canónico absoluto da sua obra sinfónica, KV. 543, 550 e 551 – obras que, inequivocamente, figuram entre as mais importantes e influentes compostas em todo o século dezoito – foram escritas num curtíssimo período de seis semanas ou pouco mais, durante o Varão de 1788, circunstância concludente a partir das entradas no catálogo pessoal de Mozart, respectivamente, datadas de 26 de Junho, 25 de Julho e 10 de Agosto.
Tradicionalmente, tem-se partido do princípio de que Mozart nunca tocou estas sinfonias. No entanto, tal não parece sustentável já que não só essa convicção é totalmente contrária à prática habitual do compositor, como também a rápida divulgação das obras, em especial das KV. 550 e 551, e o facto de ele ter revisto a KV. 550, juntando clarinetes à orquestração, sugerem que, de facto, foram apresentadas publicamente.
E não terão faltado oportunidades para o efeito. Lembremos a nota numa carta datada de Junho de 1788, por altura da composição da KV. 543, dando a entender que Mozart estava a planear uma série de concertos no futuro imediato, para além do facto de que concertos, em Leipzig em 1789, Frankfurt em 1790 e Viena em 1791, todos incluíam sinfonias.
Ainda que não deixe de ser tentador descartar a ideia romântica de que as derradeiras sinfonias representam uma súmula e o culminar da arte sinfónica de Mozart – é perfeitamente absurdo pensar que ele teria consciência de que estas seriam as suas últimas peças do género – no entanto, tipificam algumas características essenciais do seu estilo sinfónico que, sem dúvida, constituem o grande contributo para a sinfonia.
Naquele contexto, gostaria de salientar a perfeita noção da proporção e do equilíbrio estrutural, um vocabulário harmónico riquíssimo, o delinear da função através de material temático distintivo e característico e uma especial preocupação com as texturas orquestrais que, muito particularmente, manifestou na escrita extensa e idiomática para os instrumentos de sopro.
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Sinfonia No. 39
Sinfonia em Mi bemol Maior obedece a uma orquestração em que os oboés estão ausentes, circunstância que condiz com solução idêntica do anterior Concerto para Piano KV. 482. A tonalidade é uma das favoritas do compositor a qual tem sido interpretada como assumindo, a um tempo, a dupla perspectiva de suficiência e terna nostalgia, para além de ser a mais presente na música maçónica de Mozart.
Esta é uma daquelas sinfonias que remonta ao padrão mais habitual dos quatro andamentos com o restabelecimento da solução Menuetto/Trio na terceira secção. O ‘Allegro’ inicial é um ‘Adagio-allegro’, portanto, novamente precedido por uma lenta introdução, especialmente notável pelo seu tema cantante legato. O andamento lento é o ‘Andante com moto’, em Lá bemol, um movimento lírico perturbado por grandes e súbitas manifestações em tonalidades afins.
Quanto ao ‘Menuetto/Trio’, parece-me evidente afirmar uma «tendência» para soar a Schubert, com a evidente proeminência das partes de clarinete na secção do Trio. Termina com um ‘Allegro’ que não podia ser mais complexo e complicado, especialmente original e inoivador na escrita para a secção das trompas.
A interpretação que vos proponho – não só desta mas também da No. 40 é a do Maestro Harnoncourt com a Filarmónica de Viena. A última também sob direcção de Harnoncourt é com a Orquestra de Câmara da Europa. Por razões muito pessoais, fiquei particularmente ligado a estas leituras cuja pertinência tive oportunidade de confirmar por ocasião do ano jubilar mozartiano de 2006, em que Nikolaus Harnoncourt foi o convidado de honra do Mozarteum para as comemorações dos 250 anos do nascimento de Mozart.*
Tive o raríssimo privilégio de assistir à gala matinal – abertura oficial muito restrita, no Mozarteum, apenas por convite, que é preciso não confundir com a gala da noite no Grosses Festspielhaus – em que Harnoncourt, num discurso absolutamente espantoso e memorável, explicou porque estas e, em especial, a KV. 550, era a sinfonia da sua vida. Já publiquei esse testemunho interessantíssimo pelo que basta procura-lo no arquivo.
Boa audição!
http://youtu.be/9CpA7tlVqN4
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Sinfonia No. 40
Sem dúvida que foi com duas orquestras em perspectiva que Mozart compôs as duas versões da sua Sinfonia em Sol menor KV. 550, obra cheia de neurose, intelectual e tematicamente a mais erudita de todas as suas grandes sinfonias. Não há uma única nota a mais, ou seja, a contenção é máxima, absolutamente nenhuma concessão à facilidade ou ao ânimo leve.
Muito frequentemente, é nítida a sensação de um violento e notório desespero que nos remete para o Romantismo. A primeira versão da peça, além dos habituais naipes de cordas, foi escrita para 1 flauta, 2 oboés, 2 fagotes, 2 trompas, uma versão em que – façam o favor de reparar bem – são precisamente as trompas que contribuem para um tom particularmente agressivo da música.
Em relação à versão inicial, na revisão da orquestração a que procede em Abril de 1791, Mozart introduz clarinetes na textura e reformula as partes de oboé, conferindo à obra um cariz mais nostálgico. De qualquer modo, quer numa quer noutra, o que ressalta é a economia do material.
Esta é uma obra em que todos os cânones vigentes são postos em causa. É uma obra em que é enorme o salto para o futuro. Ela é um marco na História da Música em geral e na História da Sinfonia em particular. Com a KV. 550, o compositor perturba as consciências formatadas para uma ordem que ele vem abanar como um terramoto. Perante este quadro de tantas evidências que apenas pedem atenção na escuta, parece impossível como a obra continua a ser lida e ouvida com a ligeireza com que, não raro, ainda reparamos e contra a qual Harnoncourt se rebelou.*
A partir de então, nunca mais o género sinfónico terá qualquer espartilho. Nesta sinfonia, Mozart protagonizou um salto para a Liberdade, abrindo a porta aos grandes sinfonistas do futuro, em especial, a Beethoven que ainda conheceu e acerca de quem tinha a melhor das impressões. Ouvir a KV. 550 continua a constituir um desafio à inteligência, um convite ao enriquecimento do espírito. E, se quiserem, no contexto da tríade em que figura como segundo momento – depois da Sinfonia No. 39 e a caminho da ‘Júpiter’ – representa um território sombrio, um momento em que tudo é posto em causa, até à resolução que a Sinfonia No. 41 vem anunciar.
Vou deixá-los, tal como já tinha anunciado no artigo precedente, com a leitura de Harnoncourt à frente da Filarmónica de Viena. É, de facto, uma abordagem impecável. Assim saibam entender-lhe a diferença relativamente a outras propostas.
Boa audição!
*Depois da publicação do próximo texto, com o qual terminarei este trabalho de divulgação das quarenta (quem esteve atento, sabe que não são quarenta e uma…) sinfonias de Mozart, acrescentarei umas nota sobre o que o Maestro afirmou acerca da KV. 550, considerando-a a sinfonia que mudou a sua vida.
http://youtu.be/AP3lJy9rVOc
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Sinfonia No. 41
Desde o seu primeiro andamento, esta sinfonia é a continuação da precedente e, tal como já dei a entender, «resolve» as preocupações que a outra tinha expressado. O pathos e a ansiedade são agora ultrapassados. Trata-se de uma sinfonia de equilíbrio e ordem, de uma autêntica arquitectura que Mozart cria baseado nas suas convicções e em si próprio, uma obra cuja grandeza apenas reflecte um ideal, uma sinfonia «de realização», não de especulação.
O tranquilo diálogo do segundo andamento, um ‘Andante cantabile’ é deliberadamente diferente do segundo andamento da Sinfonia No. 40. Nenhuma ansiedade nem sombra de qualquer espécie. Sem pausas mas sem tensão, a partitura empurra o ouvinte em direcção à plena luz, como Tamino fará em relação à luz da sua iniciação.
Insisto na necessidade de sempre ter presente que Mozart compõe as três sinfonias num curtíssimo período, em pleno Verão de 1788, um tempo durante o qual mal sai de casa que importa relacionar com o texto da carta ao seu Irmão Maçon Puchberg . Neste contexto, para tentar entender a unidade de pensamento da trilogia, preciso é que relacionemos o último movimento desta ‘Jupiter’ com o primeiro andamento da Sinfonia No. 39 já que, assim procedendo conseguimos imaginar como, na sua oposição, mutuamente se complementam.
Para rematar a obra, Mozart regressa ao símbolo da dualidade e da oposição. Começando no caos inicial dos ritmos quebrados, na violência dos batimentos – numa palavra, em tudo o que o princípio deste tríptico tem a ver com escuridão, ansiedade e desordem – Mozart vai guiar-nos para a luz, força e beleza.
Em conclusão, não é difícil que, neste compósito e complexo dispositivo sinfónico, possamos ler um percurso maçónico em que, entre outros, tivemos um vislumbre da claridade da esperança através da transparência do primeiro tema da Sinfonia No. 39, seguindo-se a escuridão da No. 40, num combate sem tréguas, escorregando pelo desânimo, até à estonteante luz da última sinfonia.
Finalmente!
Cheguei ao fim do trabalho que me propus. É o fim de uma caminhada fascinante. Em determinados momentos, a circunstância de sermos tão gratificados por verdadeiras epifanias musicais, quase fazemos um esforço para não esquecer a evidência de todo um percurso composicional que só pode ser plenamente entendido se, constantemente, o formos relacionando com as obras, de todos os géneros que, entretanto, Mozart ia compondo.
Humilíssimo, curvo-me perante o génio. Ousei ler algumas entrelinhas do divino Mozart. Lá do Oriente Eterno onde repousa, perdoará ele o atrevimento, mesmo tendo em conta o propósito da divulgação que me pareceu pertinente nestas ligeiras páginas do facebook?
Enfim, eis a última gravação proposta que, como já estava anunciado, continua com a Filarmónica de Viena sob a condução de Nikolaus Harnoncourt.
Boa audição!
http://youtu.be/zK5295yEQMQ
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