[sempre de acordo com a antiga ortografia]

domingo, 13 de julho de 2014






Marcel Proust,
10 de Julho de 1871

 

Dentre os que já foram a Pádua, dirijo-me a quem não desperdiçou a oportunidade de gozar o privilégio de Giotto na Capela Arena. Monumento renascentista impressionante, Os Vícios e as Virtudes tanto têm desafiado o comum dos mortais como os mais sofisticados criadores.

Tal é, inequivocamente, o caso de Marcel Proust. Naturalmente, três dias depois de ter comemorado o seu aniversário, não resisto à tentação de citar a passagem em que nos confrontamos com as suas impressões diante da obra em questão.

Como eu entendo que, na sua obra monumental, MP não pudesse deixar de registar estas palavras. Aliás, quem desfruta o espectáculo de Os Vícios e  as Virtudes de Giotto nunca mais será o mesmo…

“(…) Havia, enfim, dias em, que a minha mãe e eu não nos contentávamos com os museus e as igrejas de Veneza, e foi assim que um dia em que o tempo estava especialmente bonito, para revermos aqueles ‘Vícios’ e aquelas ‘Virtudes’ de que o senhor Swann me oferecera reproduções, provavelmente ainda pregadas nas paredes da sala de estudo de Combray, rumámos a Pádua; depois de termos atravessado sob o Sol a pino o jardim da Arena, entrei na capela dos Giotto, onde toda a abóbada e o fundo dos frescos são tão azuis que parece que o dia radioso também transpôs o limiar com o visitante e veio por momentos abrigar à sombra e ao fresco o seu céu puro; o seu céu puro, só que apenas um pouco mais escurecido depois de desbastado dos dourados da luz, como acontece naquelas pequenas tréguas que interrompem os dias mais bonitos, quando, sem que se tenha visto qualquer nuvem, como o Sol fitou por momentos os olhos noutro sítio, o azul, mais doce ainda, se ensombrece. Naquele céu transportado para a pedra tornada azul, voavam anjos que eu via pela primeira vez, porque o senhor Swann só me dera reproduções das ‘Virtudes’ e dos ‘Vícios’ e não dos frescos que narram a história da Virgem e de Cristo. Pois bem, no voo dos anjos redescobria a mesma impressão de acção efectiva, literalmente real que me haviam causado os gestos da Caridade ou da Inveja. Com tanto fervor celestial, ou, pelo menos, tanta sabedoria e aplicação infantis que lhes juntam as mãozinhas, os anjos estão representados na Arena, mas como seres voláteis de uma espécie peculiar que tivesse existido na realidade e houvesse figurado natural dos tempos bíblicos e evangélicos. São uns pequenos seres que voam invariavelmente adiante dos santos quando estes passam; há sempre alguns ilidade,soltos por cima deles e, como são criaturas reais e efectivamente voadoras, vemo-las a subir, descrevendo curvas, executando ‘loopings’ com a maior facilidade, precipitando-se em direcção ao solo de cabeça para baixo, com grande cópia de asas que lhes permitem manter-se em posições contrárias às leis da gravidade, e fazem muito mais pensar numa variedade de pássaros desaparecida ou em jovens discípulos de Garros* exercitando-se no voo planado que nos anjos da arte do Renascimento e das épocas seguintes, cujas asas não passam de emblemas e cuja postura é habitualmente a mesma da de personagens celestes que não fossem aladas (…)”
 

-*Roland Garros, pioneiro da aviação;

- Na edição que refiro estão grafadas em itálico as palavras que me vi obrigado a colocar entre aspas;

- MarcelProust, “Em Busca do Tempo Perdido”, Vol. VI, ‘A Fugitiva’ (Albertine desaparecida), pp. 236/7. Trad. Pedro Tamen, Relógio d’Água ed,. Ed., Lisboa 2004.

 

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