[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 31 de julho de 2015



18 de Julho de 1697 -
Falecimento do Padre António Vieira (n. 1608)

[facebook, 18.07.2015]


Nesta efeméride, logo me ocorreu aquela sentença que, citada a torto e a direito, é uma das mais mal tratadas pela comunicação social. "(...) Minha Pátria é a Língua Portuguesa" (...), excerto de "O Livro do Desassossego" de Bernardo Soares, é fruto de fortíssima impressão estética e suscitada pela leitura de uma página de Vieira. Melhor será que demos voz ao poeta, transcrevendo, portanto, o parágrafo anterior àquele em que está plasmada a citação em questão:

”(…) Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta, o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio…» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombroso vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância, de que não tenho saudades; é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de já não poder ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica(…)”

O trecho de Vieira, que tanto emocionou o desassossegado, é pura melopeia, na realidade, é o melhor Português de todos os tempos, vertido em páginas que só permanecem mortas, que não se fazem ouvir em toda a sua riqueza e grande certeza sinfónica, nas nossas casas, nas nossas escolas, em todos os locais onde seria suposto enriquecerem-nos, porque andamos todos muito preocupados com assuntos de lana caprina e, enfim, muito distraídos do que é essencial.
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Eis o original de Vieira.
Deliciem-se!
De facto, é de ir às lágrimas !!...

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"E pois nomeámos o mais sábio de todos os homens, e o mais opulento, e delicioso de todos os Reis, ele nos dirá o verdadeiro conceito que fez, e nós devemos fazer dos bens do mundo. «Eu me resolvi», diz Salomão, «a me dar a todas as delícias, e gozar todos os bens desta vida»: Dixi ego in corde meo, vadam, et affluam deliciis, et fruar bonis (Ecl 2,1). Com este pressuposto querendo, podendo, e sabendo fazer quanto quisesse, porque ninguém pôde tanto, nem quis mais, nem soube melhor que Salomão, vede o que faria. Fabricou um Palácio real em Jerusalém, que depois do Templo que ele edificara foi o segundo milagre; no monte Líbano traçou vários retiros, e casas de prazer, em que de mais de se ver junto todo o raro, e curioso do mundo, a amenidade dos jardins, a frescura das fontes, a espessura dos bosques, a caça, e montaria de aves, e feras, e até as sombras no verão, e os Sóis no inverno excediam com a arte a natureza; o trono de marfim em que dava audiência, e a carroça chamada Férculo, em que passeava, eram de tal arquitetura, e preço, que faz particular descrição deles a Escritura; às galas de Salomão o mesmo Cristo lhes chamou glória; os tesouros de ouro, e prata, que ajuntou, eram imensos; os gados maiores, e menores, que naquele tempo também eram riquezas dos Reis, não tinham número; os cavalos estavam repartidos em quarenta mil presépios; a sumptuosidade da mesa, para a qual concorriam diversas Províncias, e a majestade, grandeza, e ordem dos Oficiais, e Ministros, com que era servido, foi a que encheu de pasmo a Rainha Sabá; as baixelas, e vasos eram de ouro, as músicas de vozes esquisitas de ambos os sexos, e os cheiros, e aromas com que tudo recendia, quanto cria, e exala o Oriente. Não falo na qualidade, e gentileza das Damas, filhas de Príncipes, e escolhidas em diferentes nações, entre as quais só as que tinham nome, e estado de Rainhas, eram sessenta, servidas todas com aparato, e magnificência Real. Tudo isto gozava Salomão em suma paz, e com igual fama, sem inimigo, ou receio que lhe desse cuidado, e em tudo se empregava com tal aplicação, e excesso, que ele mesmo confessa de si que «nenhuma coisa viram seus olhos, nem inventaram seus pensamentos, nem apeteceram seus desejos, que lhe negasse»: Omnia quae desideraverunt oculi mei non negavi eis, nec prohibui cor meum quin omni voluptate frueretur (Ecl 2,10). Estando pois nestas felicidades de Salomão, não só recompilados, mas estendidos todos os bens do mundo, saibamos por fim que conceito fez deles. Ele o diz, e em bem poucas palavras: Cum me convertissem ad universa opera, quae fecerunt manus meae, et ad labores in quibus frustra sudaveram, vidi in omnibus vanitatem, et afflictionem animi (Ibidem, 11): «Voltando os olhos a tudo quanto tinha feito, em que debalde tinha trabalhado, e suado» («feito» diz, e «trabalhado», e «suado», e não «gozado», porque tudo o que gozou foi «debalde», frustra) «e o que vi, e achei em tudo, é que tudo é vaidade, e aflição de ânimo»: Vanitatem, et afflictionem animi. Logo se todos os bens do mundo são vaidade, como podem ser verdadeiros bens? E já que lhes concedamos o nome de bens; se todos causam aflição do ânimo, como podem ser bens sem mistura de males?"

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Padre António Vieira, "Sermão da Segunda Dominga da Quaresma", in Obra Completa do Padre António Vieira, direção de José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Círculo de Leitores, 2013, Tomo II, Volume II, pp.59-60.

 
 

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