[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quinta-feira, 9 de julho de 2015




Marcello Duarte Mathias,
memória de um diplomata de muitas Letras


[facebook, 17.04.2015]

Em Novembro de 1991, enquanto Técnico do Ministério da Educação, deslocado em serviço na Costa Leste dos Estados Unidos, estivera eu uns dias em Boston, Massachussets, e Providence, Rhode Island, como formador em matérias da minha especialidade, no quadro de seminários destinados aos professores de Português que trabalhavam naquela área, antes de me encaminhar para Mount Vernon, já no Estado de Nova Iorque, onde permaneceria mais uns dias, desenvolvendo o mesmo tipo de trabalho com outros grupos de docentes.

Foi em Mount Vernon que, num domingo, o Senhor Cônsul-Geral de Portugal em Nova Iorque me convidou para participar numa festa com membros da fortíssima comunidade portuguesa local. Sabiamente, soube proporcionar-me excelentes horas de troca de impressões com americanos de ascendência portuguesa, luso-americanos e americanos que com aqueles se relacionavam, um poliedro multifacetado de pessoas que me forneceriam preciosos elementos que muito contribuiriam para melhorar o meu trabalho.

Nunca mais esquecerei o seu ‘savoir-faire’, o modo discreto como fez a ponte entre o técnico que eu era e aqueles representantes de uma realidade sui generis de conotações lusas tão subtis. Um excepcional diplomata, em toda a acepção da palavra, homem informadíssimo, culto, senhor de um discurso absolutamente fascinante.

Portanto foi num contexto profissional, há vinte e tal anos, num divino Outono nova-iorquino, que conheci o Embaixador Marcello Duarte Mathias, numa altura da sua carreira diplomática em que exercia funções de Cônsul-Geral. Deslocara-se a Mount Vernon mas residia em Nova Iorque. Não mais poderei esquecer - deixem-me fazer um parêntesis - que a residência oficial era no mítico Dakota Building, com vista sobre Central Park, num apartamento pertencente ao Estado Português, portanto, no mesmo prédio em que viveram John Lennon, Lauren Bacall, Judy Garland e Rudolf Nureyev e onde Roman Polansky filmou “Rosemary’s baby”

O mínimo que posso afirmar acerca da impressão que colhi no contacto com o brilhante diplomata e homem de Letras é que se trata de uma pessoa de impressionante lucidez, capaz de sínteses estupendas e enriquecedoras a todos os títulos. Naturalmente, durante todos estes anos subsequentes, tenho lido alguns dos seus livros e os textos que, de vez em quando, o ‘Jornal de Letras’ publica como excertos do seu Diário.

Da edição do ‘JL’ que ontem mesmo me chegou a casa, eis umas linhas dessa escrita:

Saint-Jean-de-Luz, 14 de Maio de 2014. – Esta alegria comovida, quase infantil de tão espontânea, ante as coisas simples de todos os dias – o pão quente na mesa do pequeno-almoço; uma paisagem a nascer numa manhã de Sol; o perfil de uma mulher; o pequeno círculo de luz do candeeiro que se apaga lá ao fundo da sala; o rumor da estrada filtrado pela distância; uma citação de um autor desconhecido lida ao acaso num jornal; o livro acabado de comprar e ainda nem sequer folheado; a capela descoberta numa aldeia perdida – traduzem de forma diferente, uma espécie de intensificação do instante, que mais não é, para lá de uma dispersa gratidão, do que um primeiríssimo reflexo de sobrevivência. Para tudo dizer, uma paixão pelo que nos resta de vida. Sim, é isso.

No fundo, e embora me procure convencer do contrário, um medo de morrer. A morte – como uma infidelidade a tudo o que fomos. (…)”

Formidável, não é? O homem de 76 anos, uns anos mais velho do que eu mas da mesma geração, verbalizando não só a irrepetibilidade de cada instante mas também quanto, nesta altura das nossas vidas, mais significativa é a substância dos eventos mais singelos.


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