[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quinta-feira, 9 de julho de 2015



Nós vamos já!...


[facebook, 18.04.2015]


Conheci o José Mariano Gago há cinquenta anos quando, sendo eu aluno de Letras, o via chegar ao Bar da Faculdade, vindo do Técnico, para se nos juntar, connosco partilhando aquela singularidade de sabermos perfeitamente ao que andávamos, vivendo com o 'invólucro físico' no Portugal salazarento, com a cabeça em Paris, Roma, Berlin, Londres, de onde nos chegavam as revistas, os livros da clandestinidade, os filmes, os discos.

Com os nossos 17 anos, uns em Letras, nas Filologias, História, Filosofia, outros nas Ciências, éramos uns miúdos que assumíamos o legado comum de uma Cultura, que já nos tinha formatado desde o berço das famílias onde nascêramos, condicionando as nossas futuras realizações, uns na maior notoriedade, como o Zé Mariano, o Jorge Silva Melo, o Luís Miguel Cintra, outros na maior descrição, como eu e a maioria.

Encontrámo-nos mais tarde, a partir de 1978, e durante alguns tempos, na Direcção-Geral de Educação Permanente do Ministério da Educação, ambos como formadores de professores, ele convidado, eu como docente 'destacado' para funções didático-pedagógicas, antes de ingressar na carreira técnica superior.

Trabalhámos em articulação com técnicos europeus do mais alto gabarito, ao abrigo dos Acordos Culturais luso-sueco e luso-francês, num tempo em que a Educação de Adultos era encarada como peça fundamental de um processo de Desenvolvimento Integrado, algo que, infelizmente, foi Sol de pouca dura... Porque se tivesse sido coisa duradoura, outro seria hoje o país.

Desse tempo, posterior a Abril, e até aos primeiros anos da década de 80, a obra de José Mariano Gago é muito menos conhecida do que a por ele protagonizada a partir do Governo Guterres. No entanto, foi então, como membro pivô da nossa geração, que connosco projectou a esperança e toda a poesia da mudança que perspectivámos para este país que acabara de ganhar a Liberdade e recuperar a Democracia perdida em 1926.

Desse tempo, ficou uma marca cujo perfil mais profundo de expressão caracterizadora reside, precisamente, nos elementos implícitos às considerações supra. Refiro-me a um livro de sua autoria, "Homens e Ofícios" que, entre 1978 e 1982, conheceu três edições num total de quinze mil exemplares, edições esgotadíssimas, de material absolutamente precioso destinado às actividades de Alfabetização e de Educação de Base de Adultos - em que o Estado Português se empenhou, no âmbito do Plano Nacional de Alfabetização e de Educação de Base de Adultos (PNAEBA) - subsequentes à aprovação da Lei 3/79 da Assembleia da República.

Comovidamente, tenho esse livro na mão. O seu subtítulo, desvenda um pouco mais o objectivo: "manual de fichas de exploração temática para animação cultural sobre tecnologias e sociedades". Da sua 'Introdução', extraio um parágrafo, tão revelador como «sedutor»:

"(...) O coração da cultura bate ao ritmo da prática humilde das bibliotecas de bairro, dos grupos de alfabetização, dos grupos corais, do teatro amador e dos pequenos cineclubes; vive do sangue e do esforço de quem se junta e age, sem ficar à espera que alguém se resolva, talvez, um dia, a mudar o mundo que nos diz respeito. (...)"

Se vos transcrever o Índice, ainda melhor perceberão os meandros deste homem que hoje nos deixou. Ora, entendam e subentendam:

O ESFORÇO E A MATÉRIA
- Aparelhos de elevar água de rega – a picota
- Moinhos em Portugal
- Maljoga, uma aldeia exemplar
- O que é uma barragem?
- Como funciona um gerador eléctrico
- Gás de estrume
- Aproveitamento do gás metano
- Átomos e moléculas (1)
- Átomos e moléculas (2) – reacções químicas
- Átomos e moléculas (3) – calcular pesos em reacções químicas
-Trabalho ou energia


A TERRA
- Gira ou não gira?
- Argumentos dos antigos a propósito da imobilidade da Terra
- Com um pêndulo pode ver-se que a Terra roda
- O peso que as coisas têm umas das outras
- A queda das coisas e o movimento da Lua
- A vara do vedor e a atracção da Terra
- A ciência popular do vedor segundo o ‘Lunário Perpétuo’
- As marés
- A origem do Sol…
- … e dos planetas
- A energia, o clima e o progresso


OS PRODUTOS E OS HOMENS
- A roupa e a casa
- Os trabalhos do linho
- A indústria do linho em 1919
- Os tapetes de Arraiolos vão acabar?
- O chão e as casas
- Tipos de construção: as paredes da casa
- A pedra e o tijolo, materiais ricos
- O granito e o barro


Cada uma destas 30 fichas foi escrita por um homem de Ciência, um Físico das partículas que era um grande poeta. Cada ficha é um mundo de descobertas, em que o elemento essencial - cuja partilha de conhecimento, com o maior empenho, mesmo devoção, o autor promove - se articula com uma infinidade de conotações, todas brilhantes, ricas, adequadas aos homens e mulheres que querem aprender, para mudar a sua vida e o Mundo, ao lado de companheiros, nas mesmas circunstâncias.

O Zé Mariano, cientista, dos raríssimos ministros que serviram o país a quem podemos atribuir a condição de ‘estadista’, era o homem protótipo da nossa que é a geração de sessenta. Como qualquer de nós, ele foi à Universidade, ciente do privilégio de uma elite à qual pertencíamos, preocupado com a partilha do Saber, partilha, sim, como dever essencial resultante de tal vantagem pessoal. Um homem para quem era multifacetado e polivalente o Serviço que, ao longo da vida, prestou ao outro.

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Olha, Zé Mariano, até já! Isto é um instante! Mais uns cósmicos momentos e eis que, com Lavoisier, e para que nada se perca, já nos transformamos na matéria essencial do Universo. Eis-te, fisicamente, já parte da infinitude. Nós vamos já…

 
 
 
O físico de partículas morreu hoje, aos 66 anos. Foi o político que mais tempo ocupou o cargo de ministro, num total de 12 anos. Corpo estará na Basílica da...
 
 
 
 

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