[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 31 de julho de 2015



Mozart, a Sinfonia em Sol menor
e o aniversário do
António Cunha Leal

[facebook, 24.07.2015]

Hoje é o aniversário de um querido Irmão e meu amigo que, como sabem, é pai de outro querido amigo, o André Cunha Leal. Com o abraço fraternal de parabéns e votos de que o dia se repita por muitos, aqui deixo ao grande melómano a memória de um evento assinalável, qual seja o do dia 24 de Julho de 1788, que antecedeu aquele em que Mozart deu entrada no seu catálogo pessoal da SInfonia em Sol menor, mais tarde, a KV.550.

Destaco a véspera porque terá sido o fabuloso dia de acabamento de uma obra absolutamente determinante da História da Música de todos os tempos. Só podemos imaginar o desassossego, o afã, e, finalmente, o apaziguamento do compositor depois de tanta perturbação. Estava a atravessar um período crítico, o Verão mais turbulento da sua vida, os dias em que mais aflito se sentiu relativamente à necessidade de saldar compromissos, o que bem atestado ficou na carta que escreveu a Michael Puchberg.

Já de seguida, um resumo de trabalhos anteriores que, naturalmente, hoje aproveito, ainda com especial saudação ao meu amigo.

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O cúmulo canónico absoluto da sua obra sinfónica, KV. 543, 550 e 551 – obras que, inequivocamente, figuram entre as mais importantes e influentes compostas em todo o século dezoito – foram escritas num curtíssimo período de seis semanas ou pouco mais, durante o Varão de 1788, circunstância concludente a partir das entradas no catálogo pessoal de Mozart, respectivamente, datadas de 26 de Junho, 25 de Julho e 10 de Agosto.

Tradicionalmente, tem-se partido do princípio de que Mozart nunca tocou estas sinfonias. No entanto, tal não parece sustentável já que não só essa convicção é totalmente contrária à prática habitual do compositor, como também a rápida divulgação das obras, em especial das KV. 550 e 551, e o facto de ele ter revisto a KV. 550, juntando clarinetes à orquestração, sugerem que, de facto, foram apresentadas publicamente.

E não terão faltado oportunidades para o efeito. Lembremos a nota numa carta datada de Junho de 1788, por altura da composição da KV. 543, dando a entender que Mozart estava a planear uma série de concertos no futuro imediato, para além do facto de que concertos, em Leipzig em 1789, Frankfurt em 1790 e Viena em 1791, todos incluíam sinfonias.

Ainda que não deixe de ser tentador descartar a ideia romântica de que as derradeiras sinfonias representam uma súmula e o culminar da arte sinfónica de Mozart – é perfeitamente absurdo pensar que ele teria consciência de que estas seriam as suas últimas peças do género – no entanto, tipificam algumas características essenciais do seu estilo sinfónico que, sem dúvida, constituem o grande contributo para a sinfonia.

Naquele contexto, gostaria de salientar a perfeita noção da proporção e do equilíbrio estrutural, um vocabulário harmónico riquíssimo, o delinear da função através de material temático distintivo e característico e uma especial preocupação com as texturas orquestrais que, muito particularmente, manifestou na escrita extensa e idiomática para os instrumentos de sopro.

A Sinfonia No. 40

Sem dúvida que foi com duas orquestras em perspectiva que Mozart compôs as duas versões da sua Sinfonia em Sol menor KV. 550, obra cheia de neurose, intelectual e tematicamente a mais erudita de todas as suas grandes sinfonias. Não há uma única nota a mais, ou seja, a contenção é máxima, absolutamente nenhuma concessão à facilidade ou ao ânimo leve.

Muito frequentemente, é nítida a sensação de um violento e notório desespero que nos remete para o Romantismo. A primeira versão da peça, além dos habituais naipes de cordas, foi escrita para 1 flauta, 2 oboés, 2 fagotes, 2 trompas, uma versão em que – façam o favor de reparar bem – são precisamente as trompas que contribuem para um tom particularmente agressivo da música.
Em relação à versão inicial, na revisão da orquestração a que procede em Abril de 1791, Mozart introduz clarinetes na textura e reformula as partes de oboé, conferindo à obra um cariz mais nostálgico. De qualquer modo, quer numa quer noutra, o que ressalta é a economia do material.

Esta é uma obra em que todos os cânones vigentes são postos em causa. É uma obra em que é enorme o salto para o futuro. Ela é um marco na História da Música em geral e na História da Sinfonia em particular. Com a KV. 550, o compositor perturba as consciências formatadas para uma ordem que ele vem abanar como um terramoto. Perante este quadro de tantas evidências que apenas pedem atenção na escuta, parece impossível como a obra continua a ser lida e ouvida com a ligeireza com que, não raro, ainda reparamos e contra a qual Harnoncourt se rebelou.

A partir de então, nunca mais o género sinfónico terá qualquer espartilho. Nesta sinfonia, Mozart protagonizou um salto para a Liberdade, abrindo a porta aos grandes sinfonistas do futuro, em especial, a Beethoven que ainda conheceu e acerca de quem tinha a melhor das impressões. Ouvir a KV. 550 continua a constituir um desafio à inteligência, um convite ao enriquecimento do espírito. E, se quiserem, no contexto da tríade em que figura como segundo momento – depois da Sinfonia No. 39 e a caminho da ‘Júpiter’ – representa um território sombrio, um momento em que tudo é posto em causa, até à resolução que a Sinfonia No. 41 vem anunciar.

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Vou deixá-los, com a leitura de Harnoncourt à frente da Chamber Orchestra of Europe, numa gravação ao vivo na Grosser Musikvereinsaal de Viena. É, de facto, impecável. Assim saibam entender-lhe a diferença de abordagem relativamente a outras propostas...

 

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