Privilégio
[Odeceixe II, 2015]
Manhã de surtida a espreitar ouriços, casas-alugadas, burriés, cabozes, pequeninos polvos e ainda exuberante flora marinha. Tudo numa grande poça, muito amiga deste meu neto, na margem direita da Ribeira de Ceixe, mesmo na zona da foz e, portanto, de confluência com o oceano, esotérico espaço apenas acessível durante curto período de hora e meia, duas horas, no máximo.
À tarde, muito bem descendo a maré, mais um sagrado momento de banho, o mais solene passo do ritual que se presta neste templo litoral. Rebentação constante, agitada, ondas, mais ondas, um ritmo imparável do enrolar em carreiras, tão doces. Aguentar o embate, mergulhar ou não naquela epifania de grossa a espuma, borbulhando em afagos, num aconchego de todos os abraços.
Acresce o privilégio de tudo isto partilhar com o Pedro Maria cuja relação com o mar é totalmente livre, sem temores mas respeitosa e, tanto assim, que, só comigo por perto e vigilante, tem sido iniciado nalgumas «orações» um tanto ou quanto mais ousadas deste rosário de provas que também são de coragem. Temps de jouer...
Nada muito bem, já todos os estilos, tendo começado aos quatro anos e, agora, quase com onze, confiante, deixa os miúdos da sua idade para trás para me acompanhar numa zona onde só os adultos se atrevem.
Voltamos ao areal. encaminho-me para o nosso poiso. Já sentado, pego no pré-histórico rádio transístor ‘Sanyo, 2 Band Receiver’, ao qual fiz a concessão de uns pequenos auscultadores, que me acompanha para todas as latitudes, inclusive as musicais de Salzburg e de Bayreuth, meu adereço já vosso conhecido de outros textos.
Está sempre sintonizado para a RDP 2. Mal começo a ouvir, o sobressalto de logo reconhecer “Im Abendrot”, uma das “Vier letzte Lieder”, talvez a minha preferida, pela inconfundível Schwarzkopf.
Eram cerca de cinco e meia da tarde. O Sol ainda alto, distante do Abendrot (crepúsculo). Contudo, mesmo sem essa coincidência, que formidável remate, meu Deus, depois da bênção das águas, da companhia cúmplice e confiada do Pedro Maria, a Arte intemporal, poema de Eichendorf, música de Srauss, uma voz incomparavelmente divina. Temps de jouir...
Emoção intensa e imensa que, na medida do possível, gostaria de partilhar convosco. Para tanto, “Im Abendrot”, texto lindíssimo de Joseph von Eichendorf, também em tradução para Inglês. A interpretação é a da referida diva, George Szell dirigindo a Filarmónica de Berlin.
Im Abendrot
Wir sind durch Not und Freude
Gegangen Hand in Hand:
Vom Wandern ruhen wir beide
Nun überm stillen Land.
Rings sich die Täler neigen,
Es dunkelt schon die Luft,
Zwei Lerchen nur noch steigen
Nachträumend in den Duft.
Tritt her und laß sie schwirren,
Bald ist es Schlafenszeit,
Daß wir uns nicht verirren
In dieser Einsamkeit.
O weiter, stiller Friede!
So tief im Abendrot,
Wie sind wir wandermüde -
Is dies etwa der Tod?
[ Inglês: Evening
We have gone through sorrow and joy
hand in hand;
from wandering we now rest
on the silent land.
Around us, the valleys bow;
the air is growing darker;
two larks soar still
with reverie into the fragrant air.
Come close to me and let them fly about;
soon it will be time to sleep;
let us not lose our way
in this solitude.
O vast, tranquil peace!
so deep at sunset.
How weary we are of wandering –
Is this perhaps death?]
Boa Audição!
[Odeceixe II, 2015]
Manhã de surtida a espreitar ouriços, casas-alugadas, burriés, cabozes, pequeninos polvos e ainda exuberante flora marinha. Tudo numa grande poça, muito amiga deste meu neto, na margem direita da Ribeira de Ceixe, mesmo na zona da foz e, portanto, de confluência com o oceano, esotérico espaço apenas acessível durante curto período de hora e meia, duas horas, no máximo.
À tarde, muito bem descendo a maré, mais um sagrado momento de banho, o mais solene passo do ritual que se presta neste templo litoral. Rebentação constante, agitada, ondas, mais ondas, um ritmo imparável do enrolar em carreiras, tão doces. Aguentar o embate, mergulhar ou não naquela epifania de grossa a espuma, borbulhando em afagos, num aconchego de todos os abraços.
Acresce o privilégio de tudo isto partilhar com o Pedro Maria cuja relação com o mar é totalmente livre, sem temores mas respeitosa e, tanto assim, que, só comigo por perto e vigilante, tem sido iniciado nalgumas «orações» um tanto ou quanto mais ousadas deste rosário de provas que também são de coragem. Temps de jouer...
Nada muito bem, já todos os estilos, tendo começado aos quatro anos e, agora, quase com onze, confiante, deixa os miúdos da sua idade para trás para me acompanhar numa zona onde só os adultos se atrevem.
Voltamos ao areal. encaminho-me para o nosso poiso. Já sentado, pego no pré-histórico rádio transístor ‘Sanyo, 2 Band Receiver’, ao qual fiz a concessão de uns pequenos auscultadores, que me acompanha para todas as latitudes, inclusive as musicais de Salzburg e de Bayreuth, meu adereço já vosso conhecido de outros textos.
Está sempre sintonizado para a RDP 2. Mal começo a ouvir, o sobressalto de logo reconhecer “Im Abendrot”, uma das “Vier letzte Lieder”, talvez a minha preferida, pela inconfundível Schwarzkopf.
Eram cerca de cinco e meia da tarde. O Sol ainda alto, distante do Abendrot (crepúsculo). Contudo, mesmo sem essa coincidência, que formidável remate, meu Deus, depois da bênção das águas, da companhia cúmplice e confiada do Pedro Maria, a Arte intemporal, poema de Eichendorf, música de Srauss, uma voz incomparavelmente divina. Temps de jouir...
Emoção intensa e imensa que, na medida do possível, gostaria de partilhar convosco. Para tanto, “Im Abendrot”, texto lindíssimo de Joseph von Eichendorf, também em tradução para Inglês. A interpretação é a da referida diva, George Szell dirigindo a Filarmónica de Berlin.
Im Abendrot
Wir sind durch Not und Freude
Gegangen Hand in Hand:
Vom Wandern ruhen wir beide
Nun überm stillen Land.
Rings sich die Täler neigen,
Es dunkelt schon die Luft,
Zwei Lerchen nur noch steigen
Nachträumend in den Duft.
Tritt her und laß sie schwirren,
Bald ist es Schlafenszeit,
Daß wir uns nicht verirren
In dieser Einsamkeit.
O weiter, stiller Friede!
So tief im Abendrot,
Wie sind wir wandermüde -
Is dies etwa der Tod?
[ Inglês: Evening
We have gone through sorrow and joy
hand in hand;
from wandering we now rest
on the silent land.
Around us, the valleys bow;
the air is growing darker;
two larks soar still
with reverie into the fragrant air.
Come close to me and let them fly about;
soon it will be time to sleep;
let us not lose our way
in this solitude.
O vast, tranquil peace!
so deep at sunset.
How weary we are of wandering –
Is this perhaps death?]
Boa Audição!
From one of the very best albums of the 20th century.
youtube.com
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