[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quinta-feira, 15 de outubro de 2015




14 de Outubro de 1791Efeméride mozartiana

 
Mozart, a última carta


Há duzentos e vinte e quatro anos, escreveu Mozart, datada de Viena - cerca de um mês e meio antes da morte, que ocorreria em 5 de Dezembro seguinte - aquela que terá sido a sua última carta, já que, com data posterior, mais nenhuma nos chegou ao conhecimento. A destinatária é Constanze que continuava nas termas, em Baden, relativamente perto da capital.

Entre outros detalhes, como os relativos à educação do filho mais velho Carl Thomas, na altura com sete anos, o que mais nos interessa na missiva é o modo como o compositor põe a mulher ao corrente do sucesso de “A Flauta Mágica”.

E, de particularíssimo interesse, um episódio que, a juntar a outros, nos dá a entender como, de facto, eram cordiais e até afectuosas as suas relações com quem, em sentido diametralmente oposto, a ficção de obras de Puchkine, Rimsky Korsakov, Peter Schäfer e Milos Forman arquitectou como seu arqui-inimigo.

Pois, então, é precisamente na referida carta que evidencia como era íntimo o seu convívio com o grande Antonio Salieri e Madame Cavalieri, a amante. Fora buscá-los a casa, tinha-os levado para o seu camarote.

“(…) Não podes imaginar como foram simpáticos nem o modo como apreciaram, não só a minha música mas também o libreto e tudo o mais. Ambos me afirmaram tratar-se de uma ópera digna de ser representada em qualquer grande festividade e perante o maior monarca e que, certamente, iriam mais vezes porque jamais tinham visto mais belo e agradável espectáculo. Salieri ouviu e observou tudo com a maior atenção e, desde a abertura até ao coro final, a mínima passagem lhe suscitava um ‘bravo’ ou ‘bello’. Ele e a Cavalieri agradeceram e voltaram a agradecer por lhes ter proporcionado tão grande favor (…) Depois da récita, levei-os a casa (…)”.

Sabemos o que eram as relações sociais no fim do século dezoito, marcadas por uma superficialidade desconcertante, e, aliás, tal como hoje, em que a hipocrisia impunha a afirmação do contrário do que, afinal, sentia aquele que emitia um juízo, uma qualquer avaliação. Porém, no contexto desta carta, o que Mozart dá a entender é a cumplicidade de oficiais do mesmo ofício (a Cavalieri também era cantora) na apreciação de uma obra que – sabêmo-lo também nós – de facto, é de tal modo extraordinariamente bela que não podia ser objecto de palavras menos encomiásticas.

Se tivesse lido esta carta e tido acesso a outros factos que os estudos musicológicos têm vindo a demonstrar, teria Puchkine escrito a peça “Mozart e Salieri”, que esteve na génese das obras subsequentes dos citados autores? Jamais saberemos, é apenas uma conjectura.

De qualquer modo, o que se impõe é analisar este documento, contextualizá-lo no tempo e no espaço e ponderar a intimidade entre o remetente e a destinatária, percebendo que não havia qualquer necessidade de exagerar ou omitir detalhes. E, tendo tudo isto em consideração – volto a insistir neste aspecto que, tão frequentemente, tenho explorado noutros textos – não tomar como reais e biográficos, eventos que foram ficcionados e que resultaram num evidente prejuízo para o modo como é recordada a relação entre Mozart e Salieri.

Finalmente, eis um excerto de “Die Zauberflöte” o famoso ‘singspiel’ que, vulgar e habitualmente, se continua a designar como ópera. É o tema do templo virtual, onde só acede quem merece entrar.

Em tradução libérrima, muito prosaica, que, espero, não faça revolver na tumba o libretista Emmanuel Schikanader, se lembra que este «é um sítio sagrado, onde não há lugar nem para a mesquinhez nem para quaisquer sentimentos baixos, como a vingança ou a traição, antes é lugar do amor, da amizade, um lugar onde quem não rejubilar com estes ensinamentos, não pode reivindicar a condição de ser humano».

Canta René Pape. Magistralmente.

Boa audição!

 
 
 
Rene Pape, Die Zauberflote, M22, 2006
youtube.com
 
 
 

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