Dia 9 de Outubro
Tempo II
Palácio de Queluz
Serão de Canções no 'Seicento'
Da sede da Gulbenkian até Queluz é um ‘pulinho’. No entanto, basta um pequeno contratempo e logo fica comprometida a chegada pontual ao Palácio. Em anteriores ocasiões, já aconteceu ter de esperar que terminasse a execução de determinada peça para poder entrar na sala. Para mim, meus amigos, é um desgaste lamentável na medida em que um tal atraso não é coisa de somenos pois em causa está não uma perda qualquer mas a perda da partilha da Arte...
Por isso, e em função do que de menos propício vinha acontecendo no concerto dirigido por Joana Carneiro - cujas impressões já vos transmiti no texto subordinado ao título “Dia 9 de Outubro, Tempo I” - resolvi sair do Grande Auditório antes de terminar “A Sagração da Primavera”. Uma vez Apolo invocado, que, ao longo de décadas e décadas do melhor desassossego que imaginar se possa, tanto me tem amparado na melomania, e consoladíssimo perante a sua divina anuência, não hesitei naquela que, só aparentemente, era maldade ao queridíssimo Igor. De facto, a uma dúzia de quilómetros, valores mais altos se levantavam mesmo!…
Depois de vencidas a A5 e o IC 19, eis-me no Palácio de Queluz, perfeitamente a tempo de participar num serão que, desde já, poderei adiantar ter sido uma festa. Como era de esperar, sala a abarrotar, gente animadíssima, na expectativa de viver a Música de Seiscentos pela mão do alaudista Ivano Zanenghi e de Giorgio Dal Monte no cravo e pela voz de Sara Mingardo. Desde logo, uma coisa absolutamente essencial vos peço, qual seja a de que entendam não ser possível reduzir o sucesso à prestação da diva. Expliquemo-nos.
Mais uma vez irradiou, com a maior exuberância, os predicados espantosos de raríssimo, puro e ímpar contralto, com uma impressionante extensão de voz que, tendo brilhado nas peças que lhe couberam de Falconieri, Monteverdi e Carissimi, então, se excedeu em “L’Eraclito amoroso” de Barbara Strozzi, obra compósita e tão sofisticada na sua singeleza de madrigal profano.
Não resisto em vo-la oferecer, com o texto de suporte para o devido acompanhamento, e privilégio absoluto, na voz da própria Mingardo! O perfeito gozo de todas as possíveis modulações, numa fidelidade impressionante ao espírito da peça, servindo-a em permanente comoção, até aos graves aterradoramente belíssimos daquele ‘sotterrimi’ final.
Extraordinária? Adjectivo aquém do seu gabarito… Mas, voltando ao fim do penúltimo parágrafo, como seria isto possível sem a cumplicidade íntima e plena de Zanenghi e G. Dal Monte? Não, não «acompanham» Mingardo. Não, com ela, fazem parte, isso sim, de um autêntico ‘triângulo de ouro’, lugar geométrico ideal à ‘manufactura’ das fantásticas proezas com que nos brindam.
Aliás, que momentos musicais tão transcendentes nos propiciaram os dois músicos com a “Toccata XX Sarabanda in varie partite per tiorba sola” de Piccinini e “Toccata seconda da Primo Libro di Toccate e Partite d’Involatura di Cimbalo”! O ambiente certo do serão. A atmosfera descontraída, em que tudo fluia com uma ‘naturalidade’ que é filha do mais alto requinte, sem o mínimo constrangimento.
Sabem, é preciso ser «muito grande» para que estas coisas aconteçam. E eles são-no! Vindo a Queluz, pela mão da Parques de Sintra Monte da Lua e do Massimo Mazzeo, acabam por nos convencer de que seremos merecedores do privilégio da altíssima qualidade da Arte que nos trazem… Ou seja, mais um manifesto do paradoxo do destinatário último da Arte, a quem é concedido o vislumbre do sublime...
Finalmente, ao pedir-vos que sigam o mais atentamente possível a gravação* que consegui encontrar de “L’Eraclito amoroso”, reparem na dicção soberba de Sara Mingardo e na sua esplêndida capacidade de desvendar ‘chiaroscuri’, apenas com um único ‘golpe’ de voz. Um verdadeiro prodígio!
Boa Audição!
https://youtu.be/pP6yxp1MOLo
Udite amanti la cagione, oh Dio!
Ch'a lagrimar mi porta:
Nell’adorato e bello idolo mio,
Che si fido credei, la fede è morta.
Vaghezza ho sol di piangere,
Mi pasco sol di lagrime,
Il duolo è mia delizia
E son miei gioie i gemiti
.
Ogni martire aggradami,
Ogni dolor dilettami,
I singulti mi sanano,
I sospir mi consolano.
Ma se la fede negami
Quell’ incostante e perfido,
Almen fede serbatemi
Sino alla morte, O lagrime!
Ogni tristezza assalgami,
Ogni cordoglio eternisi,
Tanto ogni male affligami
Che m’uccida e sotterrimi.
_____________
*Não percebi nem me interessa perceber a pertinência da inserção daquelas imagens no videograma. Ignorei. Façam o mesmo!
Tempo II
Palácio de Queluz
Serão de Canções no 'Seicento'
Da sede da Gulbenkian até Queluz é um ‘pulinho’. No entanto, basta um pequeno contratempo e logo fica comprometida a chegada pontual ao Palácio. Em anteriores ocasiões, já aconteceu ter de esperar que terminasse a execução de determinada peça para poder entrar na sala. Para mim, meus amigos, é um desgaste lamentável na medida em que um tal atraso não é coisa de somenos pois em causa está não uma perda qualquer mas a perda da partilha da Arte...
Por isso, e em função do que de menos propício vinha acontecendo no concerto dirigido por Joana Carneiro - cujas impressões já vos transmiti no texto subordinado ao título “Dia 9 de Outubro, Tempo I” - resolvi sair do Grande Auditório antes de terminar “A Sagração da Primavera”. Uma vez Apolo invocado, que, ao longo de décadas e décadas do melhor desassossego que imaginar se possa, tanto me tem amparado na melomania, e consoladíssimo perante a sua divina anuência, não hesitei naquela que, só aparentemente, era maldade ao queridíssimo Igor. De facto, a uma dúzia de quilómetros, valores mais altos se levantavam mesmo!…
Depois de vencidas a A5 e o IC 19, eis-me no Palácio de Queluz, perfeitamente a tempo de participar num serão que, desde já, poderei adiantar ter sido uma festa. Como era de esperar, sala a abarrotar, gente animadíssima, na expectativa de viver a Música de Seiscentos pela mão do alaudista Ivano Zanenghi e de Giorgio Dal Monte no cravo e pela voz de Sara Mingardo. Desde logo, uma coisa absolutamente essencial vos peço, qual seja a de que entendam não ser possível reduzir o sucesso à prestação da diva. Expliquemo-nos.
Mais uma vez irradiou, com a maior exuberância, os predicados espantosos de raríssimo, puro e ímpar contralto, com uma impressionante extensão de voz que, tendo brilhado nas peças que lhe couberam de Falconieri, Monteverdi e Carissimi, então, se excedeu em “L’Eraclito amoroso” de Barbara Strozzi, obra compósita e tão sofisticada na sua singeleza de madrigal profano.
Não resisto em vo-la oferecer, com o texto de suporte para o devido acompanhamento, e privilégio absoluto, na voz da própria Mingardo! O perfeito gozo de todas as possíveis modulações, numa fidelidade impressionante ao espírito da peça, servindo-a em permanente comoção, até aos graves aterradoramente belíssimos daquele ‘sotterrimi’ final.
Extraordinária? Adjectivo aquém do seu gabarito… Mas, voltando ao fim do penúltimo parágrafo, como seria isto possível sem a cumplicidade íntima e plena de Zanenghi e G. Dal Monte? Não, não «acompanham» Mingardo. Não, com ela, fazem parte, isso sim, de um autêntico ‘triângulo de ouro’, lugar geométrico ideal à ‘manufactura’ das fantásticas proezas com que nos brindam.
Aliás, que momentos musicais tão transcendentes nos propiciaram os dois músicos com a “Toccata XX Sarabanda in varie partite per tiorba sola” de Piccinini e “Toccata seconda da Primo Libro di Toccate e Partite d’Involatura di Cimbalo”! O ambiente certo do serão. A atmosfera descontraída, em que tudo fluia com uma ‘naturalidade’ que é filha do mais alto requinte, sem o mínimo constrangimento.
Sabem, é preciso ser «muito grande» para que estas coisas aconteçam. E eles são-no! Vindo a Queluz, pela mão da Parques de Sintra Monte da Lua e do Massimo Mazzeo, acabam por nos convencer de que seremos merecedores do privilégio da altíssima qualidade da Arte que nos trazem… Ou seja, mais um manifesto do paradoxo do destinatário último da Arte, a quem é concedido o vislumbre do sublime...
Finalmente, ao pedir-vos que sigam o mais atentamente possível a gravação* que consegui encontrar de “L’Eraclito amoroso”, reparem na dicção soberba de Sara Mingardo e na sua esplêndida capacidade de desvendar ‘chiaroscuri’, apenas com um único ‘golpe’ de voz. Um verdadeiro prodígio!
Boa Audição!
https://youtu.be/pP6yxp1MOLo
Udite amanti la cagione, oh Dio!
Ch'a lagrimar mi porta:
Nell’adorato e bello idolo mio,
Che si fido credei, la fede è morta.
Vaghezza ho sol di piangere,
Mi pasco sol di lagrime,
Il duolo è mia delizia
E son miei gioie i gemiti
.
Ogni martire aggradami,
Ogni dolor dilettami,
I singulti mi sanano,
I sospir mi consolano.
Ma se la fede negami
Quell’ incostante e perfido,
Almen fede serbatemi
Sino alla morte, O lagrime!
Ogni tristezza assalgami,
Ogni cordoglio eternisi,
Tanto ogni male affligami
Che m’uccida e sotterrimi.
_____________
*Não percebi nem me interessa perceber a pertinência da inserção daquelas imagens no videograma. Ignorei. Façam o mesmo!
Scenery: London, Basel, Munich Music: Sara Mingardo sings Barbara Strozzi's "L'Eraclito amoroso", live from Wigmore Hall, 11.May.2015
youtube.com
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