[sempre de acordo com a antiga ortografia]

domingo, 20 de dezembro de 2015




Vitorino Nemésio
19 de Dezembro de 1901 (m. 1978)

[publicado no facebook em 19 de Dezembro de 2015]

Hoje, passados que são cento e quatorze anos do seu nascimento, é dia grande de celebrar a sua memória na Ilha Terceira, onde tenho e mantenho amigos para quem Nemésio é um farol. No seu aniversário, como tenho feito nos últimos anos, volto a evocá-lo, cada vez mais rendido à sua mestria e à memória do seu magistério tão singular.

Foi seu aluno no segundo ano da Faculdade de Letras de Lisboa, na cadeira de Cultura Portuguesa, em 1966. Naquelas aulas, de tal ordem era o fascínio, de tal modo se insinuava a espiral das ideias que nunca me passou pela cabeça ‘tirar apontamentos’.

Um fascínio, de facto, as conversas que mantinha connosco, cheio o famoso Anfiteatro Um, de centenas e centenas de rapazes e raparigas. Bebíamos as palavras daquele homem que, em plena década de sessenta, antes do Maio de 68, era um espírito atento, de uma espantosa lucidez, que, sabendo pensar como poucos, sabia expressar o pensamento como revolucionária e constante epifania.

Cada aula, cada encontro com Nemésio era como pedra lançada à superfície lisa do lago, desencadeando círculos concêntricos até ao infinito, até hoje. De Nemésio guardo uma recordação imensa de registos de toda a ordem, do professor, do poeta, do simplicíssimo e excelente homem que era, a proverbial e famosa despreocupação no vestir, a indefesa perante a maldade do mundo.

Eis, repetido mas nunca esgotado em toda a sua grandeza, um episódio paradigmático. Um dia, de manhã, saindo para a Faculdade, depara com um pobre pedinte, sujo, com fome, recolhido na entrada do prédio onde vivia. Sem qualquer hesitação, pega-lhe pelo braço, abre a porta de casa e diz-lhe que, como tem de seguir para o trabalho, ali o deixava. Mostra-lhe, ali, a casa de banho, aqui a cozinha, a comida que havia, enfim tudo à disposição. E, quando se tivesse recomposto, então que fosse à sua vida. Como já terão percebido, não havia mais ninguém naquela casa…

Nesta presença nemesiana, não poderia faltar uma referência emocionada ao querido amigo, Prof. António Manuel Bettencourt Machado Pires, que nascido em Angra, Catedrático jubilado, era um jovem, meia dúzia de anos mais velho do que eu, acabado de se licenciar em Românicas, naquele ano de 66. Iniciava, então, uma brilhante carreira académica que o levaria a assumir o cargo de Magnífico Reitor da Universidade dos Açores. Na altura, era assistente do seu notabilíssimo conterrâneo, e nós, alunos de ambos, tivemos o privilégio que poderão imaginar. Para ele o meu abraço enorme.

Em tempo de Natal, deste Vitorino Nemésio, poeta, «muito cá de casa» - a ana Maria, minha mulher, também sua aluna, comunga comigo esta queridíssima lembrança do mestre ímpar - vos deixo com

“Natal chique”

Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.


Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.


Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado
Só esse pobre me pareceu Cristo.

 
 
 
 

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