Quando se compara números há que ter muito cuidado para não cair na grosseira desonestidade em que têm sido férteis os governantes que, em nome do povo, depois de trinta e tal anos no poder, não conseguem sequer fazer-nos aproximar de índices minimamente satisfatórios. E deixai passar o adjectivo satisfatório, sempre muito difícil de conjugar em matéria tão contundente. Enfim, já que são incapazes de resolver um problema inegavelmente estrutural e difícil, pelo menos, deveriam deixar de ofender a nossa inteligência e capacidade de encaixe, com comparações totalmente inaceitáveis.
Logo à partida, importaria considerar que o Produto Nacional Bruto (PNB) - representando o valor de todos os bens e serviços produzidos numa economia, medida-padrão da riqueza de um país e base para as comparações económicas - nos afasta dramaticamente dos parceiros europeus do clube a que todos pertencemos, em que todos são iguais mas há uns que são muito mais iguais do que os outros.
Só no que respeita o PNB por habitante, Portugal tem pouco menos que quarenta por cento da riqueza da Áustria, cerca de metade da Itália e um terço da Dinamarca! Está claro que a Áustria e a Dinamarca, países que seleccionei porque conheço particularmente bem, também têm os seus pobres que, no entanto, nada, mesmo nada têm a ver com os nossos. Aliás, em relação aos companheiros da União, quase poderia dizer-se que pobres somos todos e não só aqueles que, entre nós, vivem abaixo do limiar da pobreza...
Pobres de Sintra
O conselho de Sintra, com cerca de meio milhão de habitantes, deverá ter qualquer coisa como cem mil pessoas vivendo com menos de 12 Euros por dia e, dentre estes, mais de metade com menos de 8 Euros por dia. A realidade sociocultural que melhor conheço é a do Sistema Educativo que, plenamente, confirma estas extrapolações. Basta consultar as estatísticas dos Apoios Educativos para que não restem dúvidas. Aliás, a Escola mais não faz do que reflectir a realidade social e sociocultural do país.
2 comentários:
Olá caro amigo,
Sei que escreves bem e que tens espirito interventivo.
Fiquei agora a saber que tens tambem preocupações sociais e culturais e que te manténs atento ao desenrolar deste penoso novelo que é o do cruel empobrecimento geral das pessoas, humildes cidadãos deste "Portucale" entorpecido na sua voracidade pelo dinheiro e por tudo o que é fácil e imediato.
Na verdade quem passa por necessidades básicas não pode, nem quer "perder tempo" com cultura, leitura, música, eqipamentos e instrumentos de educação, etc.
Esses são luxos de quem tem a barriga cheia....
Estamos numa espécie de regime de Estado Novo, em que o estado enriquece e o povo empobrece.
Este tipo de "Estado" ajuda até, quem muito explora quem nada tem, naquele ritual obsceno de criar miséria para depois a explorar ainda mais...
abraço e continua
Vitor Beja
Meu Caro Vitor Beja,
Tanta palavra, tanta ideia justa!Palavras duras as tuas, mas certeiras, como é preciso que sejam as palavras dos homens dignos e sem medo.
Por alturas do Vinte e Cinco de Abril, quantos de nós se abriram à esperança de que, num prazo razoável, estariam satisfeitas as necessidades de um povo cujo sofrimento me ensinaram a conhecer e acompanhar desde garoto, embora pertencesse a uma classe de gente privilegiada, que nunca teve de lutar para satisfazer necessidades básicas.
Bem, agora prepara-te que vem aí história, que faz parte da História, do outro lado do Estado Novo, a que aludiste.
Queres saber quando levei o primeiro murro no estômago? Tinha dez anos e acabara de entrar no primeiro ano do Liceu, no meu caso, o D. João de Castro, ao Alto de Santo Amaro.
O Professor de Religião e Moral era Monsenhor Adriano Botelho, Prior da Freguesia de Alcântara, homem de família aristocrática (era o Senhor Visconde de Botelho...) e de irrepreensíveis princípios e preocupações de ordem social.
Era o ano de 1958. Estava próximo o Natal e toda a miudagem já andava a apanhar musgo para fazer o presépio. Uma bela manhã de Outono, Monsenhor Botelho perguntou-nos se sabíamos que havia presépios vivos, com gente a sério, não figuras de barro. E disse mais. Que, com autorização dos pais, levaria os que quisessem a ver esses presépios.
Ainda sem perceber que história era aquela, eu disse que queria. E, comigo, quiseram mais três colegas. Os pais autorizaram e, no sábado seguinte, a seguir às aulas da manhã, Monsenhor Botelho meteu-nos no seu carro e levou-nos a umas grutas em Monsanto onde viviam pessoas, famílias completas, como as nossas, com crianças, algumas bebés, pais e avós, «simplesmente» num lugar que não era casa, onde havia frio por todo o lado, uma ou outra fogueira, roupa estendida em cordas a fazer de paredes, enfim, o que possas imaginar.
Como poderás entender, nunca mais os meus dias de menino privilegiado foram os mesmos... Quanto a Monsenhor Botelho, fez muitas mais cenas destas, e tantas ou tão poucas que foi parar à Patagónia, sim mesmo ao fim do mundo, praticamente desterrado.
Aliás, no meu caso pessoal, tive a tremenda sorte de me ter feito rapaz e homem sempre muito perto de dois grandes padres. Um, o Alberto Neto, também meu professor durante toda a adolescência, amigo pessoal, meu director na JEC (Juventude Escolar Católica), o educador mais completo que me foi dado conhecer em toda a vida [eu que fui e sou professor, pedagogo, técnico de Educação que sou suposto saber o que me permito afirmar neste domínio]. O outro, foi o Padre Felicidade Alves, o famoso Padre Felicidade, meu Prior em Santa Maria de Belém (Jerónimos, a minha freguesia de origem) de cuja equipa o Padre Alberto fazia parte, juntamente com outros tão famosos como o Padre Engº João Resina Rodrigues.
O Felicidade era um autêntico revolucionário, até à medula, capaz de causar todos os escândalos para viver o Evangelho tal como Cristo o fez. Foi suspenso «a divinis» pelo Papa Paulo VI, perseguido pela PIDE, etc, etc.
Foi junto destes homens, ouvindo-os diariamente, durante os anos sessenta que adquiri a consciência social, também alimentada pelo exemplo de outros homens que, para além de professores excepcionais da Faculdade de Letras de Lisboa, que cursei entre 1965 e 1970, eram grandes cidadãos, intervenientes, numa altura em que intervir era um risco. Lindley Cintra, David Mourão Ferreira, o absolutamente excepcional Manuel Antunes (também Padre, o mais ilustre dos Jesuístas, director da Brotéria) que tantos consideram a «grande cabeça portuguesa» do século vinte, Jacinto Prado Coelho, Vitorino Nemésio, Maria de Lurdes Belchior, Pais da Silva, Yvete Centeno, a então pouco mais velha do que eu Teolinda Gerção, Orlando Ribeiro, Monteiro Grilo e mais alguns que tenho um orgulho incrível em poder dizer que com eles comunguei o saber, com eles aprendi a mais nobre cidadania. Sou dum tempo em que se trabalhava, se aprendia no gozo de fazer parte dos discípulos desta gente ilustríssima.
Merecias conhecer este meu curriculum oculto, ao fim e ao cabo bem visível naquilo que vou tentando partilhar com quem me merece o maior respeito, leitores que desconheço, meus concidadãos de Sintra, terra que tanto amo e que tão mal tratada tem sido pelos poderes central e local.
Apesar de tudo, algumas coisas se vão conseguindo e, principalmente, mantendo bem acesa a chama que alimenta uma certa lucidez.
Um grande abraço e aparece sempre que puderes.
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