A transformação da Avenida Heliodoro Salgado em via pedonal é o exemplo acabado de um projecto que, entre outros factores muito negativos, foi concretizado à revelia dos cidadãos. Efectivamente, a fase de diagnóstico daquele e de qualquer projecto, sempre tão especialmente eficaz no sentido de receber o contributo da massa crítica, através de sugestões, de recomendações - fruto de sessões de debate devidamente publicitadas, em adequada representação de munícipes e fregueses e das associações de interesses cívicos - na realidade, não foi assegurada com a expressão que o caso merecia.
Em princípio, era inegavelmente interessante e de apoiar, a ideia de fomentar e promover a mudança estrutural de uma artéria estrategicamente vocacionada para o comércio tradicional na sede do concelho. Tratava-se, igualmente, de aproveitar a oportunidade para afectar e dotar de infraestruturas actuais uma zona de importância decisiva para Sintra, na confluência de actividades económicas, sociais e culturais bem evidentes no tecido urbano.
De algum modo, precipitadamente, considerou-se que a pedonalização concitava todas as virtudes. Foi, então, concretizada uma intervenção que, a nível estético, não assegurou uma articulação com as memórias do local, tendo aplicado materiais discutíveis a todos os níveis. E, neste domínio, apenas uma referência à obra de construção civil que, tecnicamente, muito mal conduzida, impermeabilizou a via, transformando-a numa ribeira em dias de alguma chuva.
Asneiras de alto preço
No domínio técnico, tendo em consideração que não foram devidamente equacionadas, as consequências têm-se revelado altamente nefastas para a qualidade de vida de todos, desde os residentes na Estefânea, aos comerciantes e aos visitantes. Um dos principais objectivos da operação, que passava pela animação do comércio local, na presunção de que mais pessoas acederiam a um local liberto da circulação automóvel, foi torpedeado por factores cuja análise não foi sistemicamente perspectivada.
É que, entretanto, se autorizava a implantação de várias grandes superfícies comerciais, num tão curto raio de alcance que, em simultâneo, aniquilava o propósito de animar aquela zona comercial. Por outro lado, a falta de actualização dos próprios comerciantes, a inexistência de estacionamento apropriado - através do aproveitamento de pequenas bolsas locais e a articulação com parques periféricos, conjugados com transportes públicos eficientes - a própria natureza do comércio instalado e a inadequação dos horários praticados, entre outras razões, acabaram por arrasar um projecto que nasceu torto e nunca se endireitou.
Os técnicos apresentaram cenários com evidentes deficiências de concepção. Os cidadãos não se envolveram no projecto, na justa defesa dos pontos de interesse da comunidade. Os decisores políticos não entenderam como, a montante da sua decisão, estes dois decisivos factores comprometiam totalmente os objectivos. Em suma, ninguém esteve à altura do que era suposto fazer em circunstâncias que tais.
Dar a volta
Na minha opinião que, na altura, tive oportunidade de dar pública expressão, a Avenida Heliodoro Salgado não precisava da transformação em zona pedonal. Para todos os efeitos, mantenho totalmente a ideia, que voltei a expressar em ocasiões mais recentes, por exemplo, na qualidade de um dos promotores do debate, em Março de 2004, sobre problemas da Estefânea. E mais afirmo, estando muito bem acompanhado, que deve ser reaberta ao trânsito.
O que aconteceu à Heliodoro Salgado, a transformação naquele lamentável sarcôfago, também é indissociável do labiríntico circuito, decorrente do seu encerramento, com todo um rol de queixas, como o aumento da poluição e o stresse dos condutores ou os engarrafamentos na Portela.
É altura de, também, acabar com o perigoso separador no segmento entre o Largo Nunes Carvalho e a Av. Desidério Camburnac. É altura de abrir a via, apenas no sentido ascendente. É altura de concretizar o projecto de por ali fazer circular o carro eléctico com destino à estação terminal dos comboios e Vila Velha. É altura de estarmos todos à altura da situação.
5 comentários:
Meu caro João Cachado,
Desta vez, parcialmente, não posso estar de acordo consigo. Dir-lhe-ei porquê.
A Avenida Heliodoro Salgado,ao tornar-se numa zona exclusivamente pedonal, transformou-se num direito colectivo à segurança e menos preocupações por parte de quem não se desloca de forma motorizada.
Pode dizer-se que, do ponto de vista arquitectónico, o que foi feito não terá sido o mais bonito e recomendado, mas isso é susceptível de correcção, embora de elevado custo.
Com a excelente memória que tem - a minha por vezes já me engana - lembrar-se-à do terrível entroncamento que fazia enervar quem por lá passasse, que um polícia quase sempre autoritário geria a seu modo. Eram apitos e matrículas tiradas, carros parados para compras e outras aventuras, entre elas a das camionetas de carreira que por ali se emgarrafavam.
Não deixarei de lembrar, ainda, que a quase totalidade do tráfego era de carros vindos de Lisboa e Cascais, que atravessavam a Heliodoro Salgado no caminho para as praias ou para a zona "saloia".
Quando aborda os actuais engarrafamentos, não se pode omitir que eles também existiam na H.S. e passariam a existir se fosse aberta ao tráfego.
É óbvio que, para quem mora no Bairro da Estefânia, a passagem pela H.S. seria mais cómoda, mas quem iria suportar novos agravamentos ambientais, mais escapes junto às esplanadas (ou era melhor fechá-las?) e degradação dos edifícios agora quase todos recuperados?
Por outro lado, nós - que defendemos parques periféricos para evitar tanto veículo na Vila -não teremos justificativo para aumentar a carga de veículos nesta zona da Estefânia que pode ser tão nobre.
Acresce o facto de, um pouco por todo o mundo, se estar a dar prioridade de espaço para os peões, não sendo preciso recordar aquilo que tão bem conhece - Salzburg - e os seus quilómetros quadrados de zona protegida, tal como sucede noutras cidades com história, entre as quais destacarei Tallinn, Riga, Berchtesgaden, Christchurch e até Montreal.
Quando refere os acessos ao Castelo de Neuschwanstein, como modelo para o nosso caminho da Pena, estou consigo, mas é na H.S. que 80 metros para peões incomodam?
Curiosamente já li outras estranhas opiniões nesse sentido feitas por quem gostará mais de ir à compras em carro motorizado do que transportar as compras em carrinho de mão, mas essa não é a postura do meu caro João Cachado.
Carro eléctrico? Sem dúvida que estou consigo, apenas lamentando que se gaste tanto dinheiro para ajudar clubes a pagar dívidas e não se invista nessa necessidade, embora tenha receio que, uma vez instalado esse maravilhoso meio de transporte, nos confrontemos com carreiras suspensas ou horários de circulação limitadíssimos, longe de resultados financeiros minimanente aceitáveis.
Agora, meu amigo, não sou adepto de transferir os engarrafamentos da Correnteza para a Heliodoro Salgado.
Sou sim adepto da Heliodoro Salgado deixar de ter a divisão central na zona de acesso ao Olga Cadaval, garantindo-se o virar à esquerda com sinalização luminosa, deixando de castigar os moradores com a ida à fonte luminosa para retornar para cima.
Com um abraço do Saloio.
Meu caro Saloio,
Espero que leia a minha mensagem hoje publicada, especialmente o último parágrafo, onde anunciei, para amanhã, a minha resposta ao seu óptimo contributo.
Um abraço do
João Cachado
viva João
Desde sexta feira que ando a matutar no texto que publica sobre a HS.
Estou em desacordo com a opinião expressa. Quanto a mim, que vivo na parte que tem trânsito, a avenida não precisa de carros mas sim de outras medidas que a encham de gente - a começar pelo combate à vergonha das lojas fechadas e das casas a cair, chagas que são da inteira responsabilidade de ilustres sintrenses...
Mas não me vou alongar nos argumentos, porque o saloio já os colocou em cima da mesa. Pelo que tenho sondado na vizinhança, há mais moradores e comerciantes que pensam assim.
deixo os melhores cumprimentos deste leitor atento e amigo
André Beja
Caro João,
Eu em contrapartida, não podia estar mais de acordo.
Tenho 33 anos de Sintra no sangue e nos poros. E, muito em particular, da Estefânea e de toda a envolvente da Av. Heliodoro Salgado.
Na minha opinião, e porque não gosto de estar com meias medidas, a Heliodoro Salgado é um bidé deprimente, que infelizmente se prolonga pela Desidério Camburnac fora, bem como pela Câmara Pestana.
A ideia de transformar a H.S. numa via pedonal só fazia sentido se esta (apesar dos seus curtos 80m) ficasse efectivamente dotada de comércio, serviços e equipamentos que dessem vida à mesma, animassem o dito percurso pedonal e acima de tudo justificassem esta opção.
Tendo estudado arquitectura, fico exponencialmente deprimido com o resultado final. Se não é um desastre, anda lá perto.
Mais: um percurso pedonal só faz sentido quando inserido num determinado contexto e quando tem continuidade. Este, além de desagregado e fragmentado, pouco oferece, estando no limiar do patético sob quase todos os pontos de vista.
Recomendo a leitura das seguintes obras: "A Paisagem Urbana" de Gordon Cullen, ou "A Imagem da Cidade" de Kevin Lynch, para que se tenha uma noção formal e universalmente aceite do que pode e deve constituir uma experiência e vivência urbana interessantes.
A H.S. que conheci, apesar de algum caos, tinha vida. A H.S. deixou de ser uma via orgânica com problemas, para se transformar numa proposta com mais problemas ainda, só que desta feita, inorgânica.
A H.S. do presente, não só está morta, como fede e tem bolor... precisa de ser enterrada.
Para ter uma via pedonal com este desfecho, prefiro a H.S. antiga, ou em alternativa, que se faça uma nova intervenção que faça sentido e que devolva no mínimo alguma orgânica ao percurso e à envolvente. Uma intervenção que crie uma via pedonal efectivamente agradável, esteticamente aprazível e simultaneamente funcional.
Quiçá, que não sirva determinados interesses...
Com um planeamento e gestão adequados ao nível autárquico, podia-se ter evitado, por exemplo, uma concentração de “n” sucursais bancárias numa distância tão curta, dando lugar a outras alternativas; edifícios habitacionais degradados ou desabitados; contentores de lixo semeados estrategicamente no pior sítio possível; bancos de jardim sem sentido; desastre ao nível da sinalética dos espaços comerciais; materiais e pavimento que representam um erro crasso em termos de estética e bom gosto; opções cromáticas nas fachadas dos edifícios desajustadas; distribuição da oferta em termos de espaços (comerciais e serviços) absolutamente discutível ou claramente ridícula, etc.
Além disso, nem sequer me vou dar ao trabalho de dar exemplos de cidades, vilas e aldeias espalhadas por esse mundo fora, que conseguem, com sucesso comprovado, fazer com que o trânsito conviva de forma harmoniosa com propostas pedonais, de comércio e serviços, gerando espaços de qualidade e permitindo experiências enriquecedoras.
Aqui no burgo, a solução normalmente passa por, das três uma: abrir ao trânsito, fechar ao trânsito ou colocar uma rotunda – mas isso já é outra história.
Um abraço e muitos parabéns pelo blogue!
Meu Caro André,
Se soubesse que, para ter o prazer de ler um seu comentário, era preciso abordar o problema da sua rua, claro que já o tinha feito há mais tempo...
Ao longo de anos e anos, já não sei quantas vezes me insurgi contra as casas degradadas e lojas fechadas. Sozinho, fiz campanhas semanas seguidas no Jornal de Sintra, com fotografias denunciando tudo quanto há para denunciar.
Tenho ido à carga e, muitas vezes, voltado à carga. Vai um exemplo?Cheguei ao ponto de não ter mais cara para dar às pessoas, especialmente aos comerciantes, a todos os comerciantes da Heliodoro Salgado, que convoquei pessoalmente para uma jornada de reflexão onde esteve o Presidente da Câmara e vereadores, em Março de 2004.
No mês de Maio seguinte, o Presidente desencadeou o processo de obras coercivas a todos os prevaricadores. Mas, com o excesso de garantismo das leis vigentes, as coisas arrastam-se a um ponto perfeitamente insuportável.
Fico à espera de que o seu combate contra a vergonha das lojas fechadas e das casas degradadads tenha mais sucesso do que o meu. Enquanto deputado municipal, o André tem meios que eu nunca poderia invocar. Use-os, se puder, em nome dos eleitores.
Aproveito a oportunidade para lembrar que, no dia seguinte ao da publicação do texto que mereceu a sua reacção, subscrevi outro acerca do mesmo tema, particularizando determinada situação. Por outro lado, outros comentários, como o de Spirale, espaldam a minha opinião.
Volta atrás. Eu tive oportunidade de dizer à então Presidente da Câmara, Edite Estrela, porque estava em desacordo. Tendo visto o projecto, era perfeitamente previsível o que sucedeu. Não foi participado, foi mal executado, é um sarcôfago horroroso em termos estéticos, gerou um labirinto de pesadelo para solucionar a supressão da via.
É possível, como em tantos conhecidos lugares, um compromisso entre o usufruto da via pelos peões com a abertura, apenas num sentido, condicionada apenas a certos veículos, incluindo o eléctrico, como tive ocasião de pormenorizar no segundo texto. Não tenho a presunção de inventar seja o que for. Apenas me reporto a soluções testadas e positivamente avaliadas.
O que existe na Heliodoro Salgado é péssimo. É pior, muito pior do que a situação anterior. Em termos ambientais, valeria a pena estudar a agressão decorrente do encerramento da Heliodoro Salgado ao trânsito, em função da sobrecarga de muitas centenas de milhares de quilómetros por ano,de veículos queimando o combustível suplementar, devido à obrigação de percorrer o tal circuito labiríntico.
Como sabe, qualquer manual de gestão urbana determina quão sistémica e integrada deve ser a perspectiva de actuação, quando se pretende alterar determinado quadro. A menos que se tivesse construído mais uma via aérea ou subterrânea, a Heliodoro Salgado não podia ser encerrada. Mas foi. Como, em simultâneo, se aprovou a implantação de grandes superfícies comerciais num pequeno raio de acção, aquela artéria, vocacionada ao comércio tradicional, de proximidade, ficou transformada numa via impermeabilizada, sem ponta de qualidade, sem vida comercial devido à feroz concorrência dos tais centros comerciais, sem hipótese de animação que não seja uma qualquer desqualificada, análoga à de qualquer subúrbio betonizado, dessas freguesias que se dizem Sintra e que podiam estar adstritas ao concelho da Moita ou de Almada ou de Vila Franca de Xira, betão, betão, puro e duro.
Parece-me que há muito para discutir, muito lugar à participação cívica. Não vejo - e lamento muito - que os partidos políticos patrocinem determinadas estratégias comuns em sítios que bem conheço no estrangeiro, iniciativas em que eu próprio tenho partiocipado, como, por exemplo, os Círculos de Estudo que também citei num dos meus textos a propósito da Heliodoro Salgado.
Respeito os partidos políticos, fui dos que, em devido e difícil tempo, lutou para que, em Portugal, eles pudessem existir. Hoje dão-me uma vontade de rir que, rapidamente, se transforma em esgar. Não trabalham ou trabalham muito mal, não promovem o trabalho de debate, de cruzamento de ideias que a democracia participativa pressupõe. Quem, como eu, por estas e mais razões, recusa a filiação partidária, tem muita, muita dificuldade em actuar em termos da intervenção cívica.
Mas não me furto ao trabalho solitário, de sapa, discreto mas concreto, a favor do que considero serem alguns dos interesses de Sintra. É de pouco alcance? Pois é. Mas não me envergonha. Dou a cara, escrevo e subscrevo. O espelho não me devolve uma imagem inconveniente. Isso me basta.
Se o Bloco de Esquerda se abrir à possibilidade de constituir um Círculo de Estudo, contem comigo.
Um abraço
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