[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quinta-feira, 6 de março de 2008


Salzburg – Festival de Inverno


Em 2008, a grande proposta do Mozartwoche – o festival de Inverno de Salzburg e o mais importante a nível mundial dedicado a Mozart – que, igualmente, definia a sua estrutura, era o acesso a uma componente, uma atmosfera da criatividade do compositor que, habitualmente, não se encontra nos programas levados a efeito nas salas de concertos.

Refiro-me, muito especificamente, às denominadas obras sacras, sob a forma de missas, litanias, vésperas e oratórias que Mozart compôs em Sazburg, portanto, antes de 1781, o ano da grande viragem, em que decide seguir para Viena, farto dos caprichos e desconsiderações que entendia ser alvo, por parte do Príncipe Arcebispo Hieronymus Colloredo.

Foi naquele contexto que, por exemplo, logo na primeira noite do festival, se ouviu a Missa em Dó Maior, K. 66 composta em Outubro de 1769, quando Wolfgang ia nos seus treze anos, a Dominicus-Messe, assim designada por ter sido dedicada ao seu amigo de infância Dominicus Hagenauer que, acabado de se ordenar, ia celebrar a sua primeira missa pública.

E, com idêntico enquadramento, Litaniae de venerabili altaris sacramento, em Si bemol Maior, K. 125, para Solistas, Coro Misto, Orquestra e Órgão, de 1772, um espantoso monumento musical – nítido prenúncio da grande Missa em Dó Maior K. 427 que, dez anos mais tarde, para sempre marcaria a História da Música – ou as Vesperae solennes de Dominica em Dó Maior, K. 321, de 1779, também para vozes solistas, Coro, Orquestra e Órgão.

Destaque ou apenas exemplo?

Gostaria de destacar o singspiel sacro Die Schuldigkeit des Ersten Gebots, K. 35 (A Obrigação do Primeiro Mandamento), cujo libretto é da autoria de Ignaz Anton Weiser, que chegou a ser Burgermeister (Presidente da Câmara) de Salzburg. A composição musical data do princípio de Março de 1767, quando Amadé acabara de fazer onze anos… Mas, Santo Deus, demonstra uma tal desenvoltura na arquitectura da orquestração, com tão bem conseguidos momentos de humor, lirismo e dramaticidade que ninguém ousará contestar a ideia de se estar perante uma peça de grande maturidade, uma irrefutável prova de génio.

Um pouco mais adiante, deter-me-ei na referência à maioria dos artistas presentes no Mozartwoche 2008. Entretanto, sem pretender enaltecer o fabuloso conjunto de intérpretes deste evento – já que todos são formidáveis – tenham presente que o agrupamento musical era o Concentus Musicus de Viena, as vozes masculinas entregues aos tenores John Mark Ainsley e Kurt Streit e as femininas aos sopranos Patrícia Petibon e Eva Mei e meio-soprano Elisabeth von Magnus, sob a direcção de Nikolaus Harnoncourt.

É preciso não deixar de ter em consideração que este, como qualquer dos outros eventos do festival, faria percorrer milhares de quilómetros a qualquer melómano que se preze. No meu caso especial, jamais perderia a oportunidade de, num tal conjunto de grandes músicos, voltar a ver e ouvir o verdadeiro fenómeno que é Patrícia Petibon, que acompanho em Salzburg, desde que ali apareceu, pela primeira vez, há oito anos. À excepcional destreza vocal, alia uma raríssima capacidade histriónica, mesmo em concerto, como era o caso. Naquela noite de 29 de Janeiro, a Petibon ouviu uma das maiores ovações deste Mozartwoche.

Estas obras sacras de Mozart ouviram-se a par de precedente e posterior música sacra de outros compositores, através de obras que evidenciam uma evidente componente espiritual sem que, em sentido restrito, possam ser consideradas música de igreja. Tais são os casos da Missa em Mi bemol Maior, D 950, de Schubert e outras peças de Bach, Haydn e Mendelssohn.

Moderna, Contemporânea & Cª Mto. Lda.

Todavia, como tive oportunidade de assinalar, na primeira parte deste artigo (JS,22.02.08), à música moderna e contemporânea coube um controverso protagonismo no programa, com uma especial atenção para a música de câmara de Anton Webern (1883-1945) – trios e quartetos de cordas, duetos para violoncelo e piano, violino e piano, bem como canções, que seriam interpretadas com as de Mozart em muitos dos concertos

Tão ou ainda mais polémica seria a inserção de peças de compositores dos nossos dias, como o Offertorium, Concerto para violino e orquestra de Sofia Gubaidulina, obra de extrema espiritualidade, de inequívoca religiosidade que, no violinista Christian Tetzlaff, teve um intérprete de tal modo excepcional que, coisa rara em Salzburg, foi autorizado a conceder um extra, interpretando um excerto de uma das Partitas de Bach.

E, ainda, Streichquartett (Quarteto de Cordas) de Thomas Larcher e Werk für zwei Klaviere und Orchester (Peça para dois pianos e orquestra) de Johannes Maria Staud, obras especialmente encomendadas pela Fundação Internacional do Mozarteum de Salzburg, cuja recepção foi sublinhada com aplausos de circunstância, diria eu saudações de boa educação, que estavam sendo lidas em articulação com os cerca de vinte e cinco ou trinta lugares da Grosse Salle do Mozarteum que - como anteriormente informei, tão escandalosamente vazios, apenas nestes dois evento - comprometiam os objectivos da direcção artística do Mozartwoche. É que as salas esgotam a lotação com um ano de antecedência…

Através de entrevistas especialmente programadas, aqueles compositores tiveram oportunidade de esclarecer acerca das características das obras que ali seriam estreadas. E, naturalmente, foram momentos importantes de elucidação. Mas, igualmente, estava em causa o facto de, através de tais encomendas, o Mozarteum privilegiar uma linha de actuação que alguns observadores e críticos, entre os quais me incluo, consideram colidir com a natureza, estrutura e propósitos do próprio Mozartwoche, num país dos mais propícios ao incentivo dos jovens compositores.

2 comentários:

Nes disse...

Espero poder em breve fazer parte dessa lotação esgotada, quer nas Obras Sacras, quer na música moderna e contemporânea.
As descrições feitas deste festival de inverno de Salzburg continuam a deixar-me fascinada.

Inês Santos Costa
(que desde muito pequena o ouve falar deste assunto e outros temas de História...)

Sintra do avesso disse...

Minha cara Inês,

Fico contentíssimo por saber que, vá lá, ainda consigo fascinar seja quem for, quanto mais não seja, por obra e graça da palavra que lhe chega aí onde você está.

Mas gostava de perceber a sua relação com a minha escrita. Diz a Inês que acontecerá desde muito pequena...

Já noutro dia lhe pedia que abrisse um pouco a «janela».

Olhe, a pensar em si e noutros leitores que gostam destes assuntos, na próxima semana, tratarei de continuar a desfazer ideias erradas acerca de Mozart, recorrendo a textos já publicados no Jornal de Sintra aos quais muita gente não acede.

Espero que seja do seu agrado.

Até breve

João Cachado