[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 19 de maio de 2008


A César…


“(…)
Em Setúbal, quando dizia ao fim da missa: «Ide em paz…», apetecia-me dizer: «Ide em guerra…» Ou seja: ide enfrentar as questões da vida, os ordenados em atraso, a fome de tantas famílias, as falências provocadas… Era necessário denunciar corajosamente as agressões à dignidade humana. Instigar as pessoas a tomar atitudes perante as injustiças.(…)

Hoje, a nossa Igreja é um arquipélago. Vive-se para a liturgia, não é evangelizadora. Acho que a Igreja não está a «funcionar», a comportar-se como Jesus quer. Já ninguém sai da missa «incomodado», na sua consciência, com a liturgia. A Igreja perdeu a capacidade de «sujar» as mãos com a vida dos homens. A Igreja deveria manifestar-se mais. Por vezes, acredita mais no Belmiro de Azevedo e outros, anda penduradas em dependências… A Igreja evangeliza por sinais e a nossa, em Portugal, não tem dado sinais. (…)

Preferimos andar «nisto», que não incomoda ninguém… As pessoas da Igreja já perderam capacidade de protesto. Por exemplo: perante a lei do trabalho que querem colocar em vigor, não percebo como é que a Igreja se cala, diante de uma agressão tão grande aos direitos da pessoa humana! É iníquo a Igreja calar-se. Dói-me que a Igreja ande entretida com coisa outras e não se empenhe numa questão tão importante para a vida da população, do país, (…) Tem de sair para a rua para o povo notar que está ao serviço do Homem. Toda esta descoberta da dignidade funda-se na democracia, que passa pela vivência e pelo testemunho de uma descoberta de valores. E estamos muito longe de qualquer coisa que se possa chamar de democracia.”

[D. Manuel Martins, bispo resignatário de Setúbal, em entrevista ao suplemento Única do semanário Expresso, 17 de Maio de 2008].

Leio estas palavras de D. Manuel Martins e, como católico que sou, logo se confirma e renasce a esperança. Sendo esta a voz do difícil tempo que vivemos – e, já repararam que, para cada geração, o seu tempo nunca foi fácil… – também não deixa de ser a da lucidez que se projecta no futuro. Porque esta voz de D. Manuel Martins, vem do princípio do tempo, e não mais se calará.

Em termos pessoais, aberta e directamente, apenas posso falar do tempo que tenho vivido. Do passado falarei, como tributo às fantásticas pessoas que, para sempre, determinaram o perfil de quem, diariamente, convosco partilha preocupações de ordem cultural, social, cívica, inequivocamente enquadradas pelos valores da Igreja que D. Manuel Martins pretende.

Nasci na década de quarenta. Nos anos cinquenta, enquanto aluno do Liceu Don João de Castro, tive como professor de Religião e Moral, Monsenhor Adriano Botelho. Era aristocrata, Visconde de Botelho, o grande senhor que nada tinha de seu – dava tudo, tudo o que recebia – esse padre que me ensinou a existência de presépios vivos, na zona do Rio Seco, entre Monsanto e Alcântara, onde famílias viviam em cavernas e cabanas.

Por essas e por outras foi desterrado para a Patagónia… A década de sessenta, atravessei-a sempre como membro desta Igreja que D. Manuel Martins proclama e reclama. A minha paróquia era a de Santa Maria de Belém, com sede no mosteiro dos Jerónimos, cujo prior era, nem mais nem menos, José da Felicidade Alves, o padre que viria a ser suspenso a divinis, por SS Paulo VI, porque teve a coragem de anunciar o Evangelho como é suposto que a Igreja Católica Apostólica Romana o faça, sem temores, ao lado dos pobres e dos desfavorecidos.

E seus companheiros, por exemplo e entre outros, os padres João Resina Rodrigues, engenheiro e professor no Instituto Superior Técnico, António Emílio, capelão da Casa Pia (que viria a ser prior de Colares) e o mais famoso, Alberto Neto, grande pedagogo, meu querido e pessoal amigo, todos eles homens envolvidíssimos nas denúncias dos excessos da ditadura de então, paredes meias com o bairro do Restelo, onde vivia a mais poderosa legião de notáveis do regime.

(continua)

Sem comentários: