O lixo do centro histórico (III)
Neste pequeno percurso, em pleno centro histórico de Sintra, através dos manifestos da cultura do desleixo, se há coisa presente e constante é o motivo, suscitando a contínua atenção de quem esteja disposto a olhar detalhadamente o que se lhe oferece e a tirar as evidentes conclusões.
Assim sendo, encaminhando os nossos passos em direcção à igreja de São Martinho, já de costas voltadas ao prédio onde está instalado o Café Paris, objecto do artigo precedente, imediatamente deparamos com outro inqualificável exemplo de incúria. Já perceberam tratar-se do edifício que define o início da frente urbana que integra a Torre do Relógio e a estação dos correios.
Àquela casa só falta mostrar as tripas, cujo estado se adivinha, sob o aspecto absolutamente degradante da fachada, escandalosamente esburacada e descolorida e por trás das janelas com alguns vidros partidos. Caricatamente, e de modo algum, caso único nas redondezas, cresce abundante vegetação sobre o beiral. A propósito, noutro dia, um miúdo alemão filho do casal com quem eu estava, perguntava se aquilo era o cabelo da casa…
Aquele que poderia ali permanecer como digno representante de um património despretensioso, discreto, algo austero mas ainda perfeitamente operacional, é hoje a inqualificável imagem da generalizada incapacidade da defesa dos interesses da comunidade.
Cumpre que, ao contrário do que tão fácil e habitualmente fazemos, não atiremos as culpas e a responsabilidade, por tão flagrante despudor, ao elo mais ou menos fraco de uma cadeia em que, inequivocamente, todos estamos envolvidos. E neste todos, necessário se revela que verifiquemos se lá estamos incluídos, nós mesmos, os que nos afirmamos na luta pela defesa do património de Sintra…
Recusemos qualquer percepção redutora desta realidade. Entendamos estar perante mais um caso que não interpela só o proprietário do prédio. Também não questiona apenas quem no local prossegue uma actividade comercial. Não, não tenhamos dúvidas. O que ali está bem patente é a imagem que nos devolve o espelho da nossa – minha e vossa – colectiva e individual incapacidade de resolução de problemas cujo enquadramento está perfeitamente ao nosso alcance.
(continua)
4 comentários:
Meu caro João Cachado,
Vejo-me obrigado a dizer-lhe "Alto Lá!!!".
Permite-se dizer "os que nos afirmamos na luta pela defesa do património de Sintra". Que despautério, meu caro, já alguma vez mereceu que qualquer alta figura cá do burgo atravessasse a rua apenas - e só - para o cumprimentar com toda a respeitabilidade? Ná, algo fervilha na sua mente que o leva a enquadrar-se no núcleo quase secreto dos defensores do património.
Na verdade o telhado que refere até já tem apresentado umas florinhas, pequenas é certo, mas a dar mais cor ambiental. Cortá-las ainda vai merecer algum reparo e depois, meu amigo, fuja para a caixa postal que fugir, vai ser apanhado, o que é fácil.
Além do mais, na eminência de uma qualquer derrocada, algumas pessoas que lá fiquem soterradas virão a beneficiar de um discurso adequado, louvando o facto de ter trazido Sintra para os ouvidos do Mundo. O marketing também estuda estas nuances, com objectivos de imagem.
É fácil deduzir-se que está proibido de entrar nos Jardins de Seteais, ficando ao portão a ver aqueles carritos todos que os donos, potenciais masoquistas, lá conseguem estacionar perante o perigo invocado e que nos corta o acesso pedonal.
Depois é o lixo, ali mesmo junto dos olhos, do nariz e do queixo do Senhor Vereador do Turismo (tem gabinete mesmo para esse lado!!!), mas essa falta de consideração por ele é ilusória, pois o mesmo é oferecido a quantos turistas aguardam pela chegada de um autocarro que os leve até à Pena. Desconfio, até, que alguns deles inventam não ter lugar - nem de pé - no veiculo, só para aspirarem mais uns bons minutos aquela ar património da humanidade.
Só lhe lembro mais uma coisa, para completar a minha opinião (tinha algumas mais, mas...) sobre os seus exageros na defesa do património. Alguma vez se metia na cabeça de alguém a criação de parques periféricos, para evitar filas intermináveis de carros no centro da Vila, que se fala em ser histórico? Só o meu amigo. A poluição que daí resulta, os milhares de veículos que assim nem chegam a parar em Sintra, apenas o pára/arranca, gratificante e por certo aplaudido por gente local que assim não terão incómodos passeantes.
Não leve a mal este meu reparo, mas é altura de agradecer o facto de ter uma garagem quase em derrocada, bombas de gasolina aos pedaços, carros sobre tudo o que é sítio quando há espectáculos no Olga Cadaval, falta de sinalização que nos dá o gosto de vermos camiões TIR articulados até ao Palácio Nacional e depois não se saber como vão voltar para trás.
Admito que agora ficou convencido de qualquer coisa, mas - desculpar-me-à - eu também tive culpa.
Mas estou consigo.
Um abraço,
Meu caro Fernando Castelo,
A ironia e o humor, como sabe o meu amigo, apenas são inequívocos atributos do homem inteligente. Este seu comentário, irónico, bem humorado, inteligente em suma, dentre as que tenho lido, é das mais interessantes e engraçadas peças de discurso sobre as sintrenses coisas.
Tiro-lhe o chapéu, Fernando Castelo! Perante um texto que constitui um penoso lamento, o meu amigo «dá-lhe uma volta» tal que ele ganha as asas que não jamais tinha ousado...
Nunca alguém tão bem caricaturou, entre outras coisas, também este esbracejar do náufrago que me sinto, no mar encapelado em que Sintra se tornou, tocada pelos ventos tão funestos da cultura do desleixo e do mais despudorado e descontrolado «laissez faire»...
Tanto o meu amigo como eu somos demasiado cordatos e elegantes para «pôr a boca no trombone» e, sem o código da ironia fina, desmascarar quem é quem... Esclarecer quem são, por um lado, a alta figura cá do burgo que atravessa a rua para cumprimentar e, por outro, a insigne figura defensora do património sintrense -que acoita as suas actividades a uma medrosa e discretíssima caixa postal - cujas «façanhas» merecem a subida honra de tal cumprimento...
Dizer e escrever, se possível ainda mais claro, que vai nua a tal real figura defensora do património. Que vai e está nua há muito tempo. Que é um tremendo equívoco cujo terreno de intervenção, mais ou menos limitado às florinhas da Volta do Duche, já foi ocupado e, a partir de Galamares, devidamente alargado aos contornos e limites do património que interessa defender em Sintra...
O tempo se encarregará de fazer o seu devido trabalho, de separação do trigo e do joio. Deixe-me lembrar-lhe que, em 18 de Fevereiro de 2005, o Jornal de Sintra publicou o meu artigo "Defesa do Património em Sintra: separar as águas" que tem tudo a ver com isto. Provavelmente, se a tal «alta figura cá do burgo» tivesse sabido acolher os meus «recados», já se teria deixado daqueles salamaleques, reduzindo à devida insignificância quem não tem significado, interessando-se pelos discretos militantes da causa que, sem medos atávicos nem patológica paranóia, ousam afirmar o que é necessário. Como, por exemplo, em Seteais.
Olhe, Fernando Castelo, gostei tanto do seu texto que amanhã vou publicá-lo, em articulação com algumas destas palavras que acabo de lhe devolver. Espero não ferir a sua discrição.
Um abraço do
João Cachado
Querido professor,
Lendo quase diáriamente os seus artigos e respectivos comentários, ainda me surpreendo pelo facto do meu queixo continuar no lugar.
Lamento que o Sr Fernando Castelo insista em que vive num mundo à parte de património abstracto. Enfim...tenho a dizer que fico feliz de viver num mundo, seja ele qual for, em que existem pessoas assim, preocupadas com algo realmente importante que transpareçam assuntos que muitas vezes estão "ao alcançe dos olhos mas não da vista". Obrigada.
Mónica
Minha Cara Mónica,
Querida amiga,
Não sei se acedeste à resposta que te enviei. Como aparece uma indicação de «noreply», não deve ter chegado. Por favor, indica-me o teu e-mail para poder esclarecer-te sobre algo que não terás entendido.
Abraço grande do
João Cachado
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