[sempre de acordo com a antiga ortografia]

terça-feira, 3 de junho de 2008

Quarenta e três

(conclusão)

Embora o chapéu do Romantismo seja de tal modo abrangente que nele quase tudo cabe, ainda se percebia que a vertente musical do nosso festival se relacionasse com um tempo e uma estética cujas marcas indeléveis ficaram por Sintra, nestes montes, veredas, caminhos e fontes, parques, jardins e monumentos com os quais, de facto, nos relacionamos nem sempre tão bem quanto seria de esperar…

Durante uma boa série de anos, a conotação romântica funcionou relativamente bem. Até a componente de dança, privilegiando um repertório muito afim do designado ballet clássico, se articulava harmoniosamente com a da música, integrando uma oferta global cujos contornos e perfil não punham em questão a tal temática abrangente do Romantismo.

Na realidade, muito mais fácil seria manter aquela marca se, a partir do momento em que passou a residir, não em Seteais mas no CCOC, a componente da dança se tivesse tornado independente, dando origem a uma temporada desfasada do Festival, obedecendo a outros contextos de figurino e calendário, portanto, mais liberta para assumir o perfil programático que, tão positivamente, Mestre Vasco Wellenkamp lhe tem imprimido nos últimos anos.

Como assim não sucedeu, cada vez mais problemática se revela a concretização de uma iniciativa, o Festival de Sintra, que obedeça à geral temática do Romantismo. Por outro lado, sem problema de maior, vai-se admitindo e, praticamente é já facto consumado, que a vertente de dança não tem qualquer conotação com a sua parceira da música, pelo que aparece no programa sem relações de afinidade, por conotação ou denotação.

O caso dos contrapontos

Então, no que se refere aos designados Contrapontos, me parece que a confusão é evidente. Proponho-vos um pequeno exercício de lógica. Primeiramente, tenhamos em consideração que a noção de contraponto, no contexto de um festival de música, tem uma inequívoca conotação com a linha dominante do tema a que obedece a programação geral.

Em segundo lugar, pelas razões aduzidas, não nos preocupemos com a vertente da dança do Festival de Sintra e admitamos que, tal como parece, em 2008 haveria uma linha dominante na programação, obedecendo ao tema Piano em Russo. Ora bem, assim acontecendo, então os eventos enquadrados pela designação Contrapontos –ocupando locais outros, à conquista de públicos outros, revestindo um carácter não formal ou de maior informalidade – deveriam revestir contornos e perfil inequivocamente relacionados, por denotação, com a temática Piano em Russo.

Naturalmente, não é muito fácil encontrar contrapontos a uma tal temática… Mas não é impossível. Todavia, por muita elucubração que o nosso exercício pressupusesse, dificilmente fariam parte do nosso rol o Requiem de Mozart, O Menino e o Mar, com base num texto de Sophia ou a ópera La Traviata de G. Verdi. Da nossa lista, no entanto, poderiam perfeitamente constar outras obras de Mozart, de Verdi, textos de Sophia, ou o programa a apresentar pelo Ensemble de Sopros Juvenil de Massachussetts, desde que devidamente negociado para o efeito... Ou uma peça pelo Teatrosfera. Claro que sim, sem equívocos, respeitando a definição implícita nestas considerações.

Tal como a entendo, importei e divulguei, esta invenção do Maestro Claudio Abbado, concretizada a partir do momento em que foi Director Artístico do Festival da Páscoa de Salzburg, com a feliz designação de contrapontos, não se traduz apenas numa proposta musical, que funcione por contraste com o restante festival, simplesmente por ser menos formal ou informal, ou por ir à conquista de um público outro, como julgo ter sido única intenção no caso de Sintra.

Atenção, também é isso… Mas a subtil articulação com um tema principal é indispensável. Volto a lembrar a designação contraponto que, como sabemos, tem tudo a ver com o mundo da música. A proposta de Abbado, o seu modelo, é que se me evidencia como efectivamente estimulante e desafiante para o ouvinte, assistente e participante.

Vale a pena ter em consideração que, em termos muito gerais, o contraponto é a arte de sobrepor uma melodia a outra e, em sentido mais restrito, de acordo com um conjunto de técnicas composicionais da polifonia. Também se pode entender como uma composição que obedece às regras da simultaneidade melódica. Etimologicamente, tem a ver com um tempo medieval em que a escrita musical se produzia não através de notas mas, isso sim, por ‘pontos’. A expressão cantus contra punctus, i.e., canto, música em contraponto, refere-se à sobreposição de punctus, portanto, ‘nota contra nota’ e, por extensão, ’melodia contra melodia’, ilustra muito bem o que pretendemos defender.

Entre outras coisas, as palavras também nos servem para expressar determinadas ideias e realidades... Num festival que tem uma tão forte vertente musical, a designação contrapontos não é despicienda e, portanto, não pode, não deve aplicar-se fora de um contexto que, sendo muito afim desta arte, é suficientemente abrangente mas não ao ponto de poder acolher tudo e mais alguma coisa, de qualquer maneira

Tudo, tudo é bem possível acontecer, enquanto evento musical, abrigado à designação de contraponto, inclusive tocar com instrumentos construídos com legumes que, no fim da função, são utilizados para confeccionar uma excelente sopa. Eu assisti a coisas destas na Áustria. Mas a relação temática, a necessidade de referência a um tema principal é indissociável…

Conclusões

Só na aparência será esta uma reflexão para iniciados. Todo o público beneficiará de uma concepção programática que observe os pontos focados. Mas nada disto significa que a presente seja uma edição que não valha a pena. Estas considerações não constituem uma avaliação. Em 2008, o Festival tem todo o mérito. Eu vou lá estar sempre ou quase sempre.

Em suma e em conclusão, estou em crer que se impõe proceder a uma cuidada reflexão acerca destas questões cuja pertinência me parece relevante. Revela-se imprescindível ir ao encontro, descobrir e apresentar um Leitmotiv de grande abrangência, conceber o Festival de Sintra como lugar geométrico de confluências culturais, presentes e articuláveis em vários suportes das Artes e Letras, procurando sincronias, fazendo cortes diacrónicos, não rejeitando anacronismos.

Eis um desafio que é preciso estar à altura.

3 comentários:

Anónimo disse...

Caro Professor João Cachado,

O senhor escreveu um texto muito longo sobre o festival de Sintra deste ano e logo desde a primeira parte tive vontade de intervir.
Afinal não abordou um problema importante que é o dos custos. Tenho muita pena que não continuem as suas críticas musicais no Jornal de Sintra onde aprendi tanta coisa nova para mim mas o Dr. Cachado nunca escreveu acerca dos custos deste festival. Eu acho que a Câmara Municipal gasta muito dinheiro com o festival mas gostava de saber a sua opinião.
Cumprimentos,

Cristina Ventura

Sintra do avesso disse...

Cara Cristina Ventura,

Peço-lhe que me desculpe por só agora responder ao seu comentário. Não percebo como me escapou a oportunidade de satisfazer a sua questão.

Ora vamos lá ver se consigo ser sucinto. Desde logo, não é possível comparar os custos do Festival de Sintra com os dos outros de que costumo dar conta, por exemplo, os vários de Salzburg (Mozartwoche, Osterfestspiele, Pfingstfestspiele, etc.), Luzern, Schleswig-Holstein, Bayreuth, Leipzig (Bach), Halle (Händel), Edinburg, Internationale Haydntage de Eisenstadt, Schubertiade Schwarzenberg, Aix-en-Provence, etc.

E não é possível porque se trata de festivais onde apenas se apresenta a "crème de la crème", só os melhores do mundo, e numa tal profusão que qualquer mortal, mesmo habituado a estas andanças, fica perfeitamente atordoado.

Daí que um festival como o da Páscoa, em Salzburg, fundado pelo próprio Karajan, que se desenvolve em duas séries de apenas quatro concertos e uma ópera, sempre e «só» com a Orquestra Filarmónica de Berlin, tenha custos da ordem da dezena de milhões de Euros...

Naturalmente, ninguém se impressiona nem apoquenta por ter de pagar 800,00 Euros (incluindo o valor da quota da Associação dos Amigos do Festival) para aceder aos lugares mais em conta, apenas para cinco eventos, o que dá, mais ou menos, trinta e dois contos por bilhete...

Quando, no Festival de Sintra, um munícipe paga dois contos por bilhete, está tudo dito, não é?...
E ainda há por aí uns medíocres e ignorantes que desconhecendo o que seja a elite europeia, se atrevem a dizer que o Festival de Sintra é elitista...

Este ano, por exemplo, artistas de primeira grandeza absoluta, só tem o grande Sokolov. Em tempo de vacas gordas, por Sintra passaram os grandes nomes. Actualmente, com muito poucos recursos, é um Festival de seguunda ou terceira linha que, mesmo assim, vai trazendo um ou outro artista de nomeada devido aos conhecimentos absolutamente excepcionais do Director musical, Dr. Luís Pereira Leal. E só me reporto à componente musical.

Está a minha amiga esclarecida? Pois é. Perguntam-me como é que eu faço para ir a dois ou três dos grandes festivais de música daquele calibre por ano. Olhe, corto em muita coisa, só compro carros em segunda mão, fico em alojamentos muito bons mas baratos e, na verdade, renuncio a tudo quanto é supérfluo porque valores mais altos se levantam.

Vou pedir ao meu amigo Dr. Mário João Machado, vice-presidente da Sintraquorum, na medida do seu possível, para lhe fornecer informações mais pormenorizadas. Mas não tenha a ideia de que é um festival caro. Pelo contrário, é pobrezinho, assim à medida do país que, em termos de eventos caros, só no football...

As melhores saudações do

João Cachado

Sintra do avesso disse...

Cara Cristina Ventura,

Já percebi que o meu amigo, Dr Mário João Machado, ainda não pôde satisfazer o pedido que me formulou e que eu lhe remeti para complementar. Entretanto, só mais uma curiosidade, acerca de um dos festivais que nomeei na minha última mensagem.

É o caso de Bayreuth, o célebre festival totalmente afecto à ópera de Wagner. Não conheço outro tão procurado. Repare que, se quiser arranjar bilhetes, tem uma lista de espera de 12 (doze) anos! Leu bem, doze anos. Há truques para contornar a questão. O mais utilizado é pertencer a uma sociedade Richard Wagner no país em que se reside e, portanto, enquanto membro e sócio desse restrito grupo, pagando uma quota anual, ter preferência na aquisição de bilhetes. No meu caso, de dois em dois anos vou a Bayreuth.

Este, por exemplo, para mim, é ano de assistir a um Ring, também designado por Tetralogia, o conjunto das quatro óperas - Ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e Crepúsculo dos Deuses - cujas encenações vão sendo periodicamente alteradas.

Ao longo da vida, durante as minhas deslocações a Bayreuth, já assisti a doze Rings, portanto quarenta e oito récitas, todas diferentes, embora as óperas sejam sempre aquelas quatro. Mas, como sabe, Wagner escreveu mais óperas. Ao todo são 13 (treze). O que eu costumo fazer é alternar. Há dois anos, assisti a récitas de "Tristão e Isolda" e "Navio Fantasma". Agora tenho o Ring e "OS Mestres Cantores de Nuremberga". Daqui a dois anos, se Deus quiser, assistirei a "Tannhäuser" e "Lohengrin" e, para isso, já estou inscrito na associação.

No caso de Bayreuth, os bilhetes são a cerca de vinte e cinco contos, portanto, um pouco mais baratos que os do Festival da Páscoa de Salzburg (cujos ingressos são os mais caros de todos os festivais que frequento).

Mas, como anteontem lhe escrevia, trata-se de realidades que nada têm de coincidentes com o que se passa entre nós. Em Portugal, só há uma instituição que nos permite assistir ao que há de melhor em todo o mundo, a preços «caseiros», enfim, só um pouco mais caros que os do Festival de Sintra cujos custos são insignificantes e, também, proporcionais ao preço dos bilhetes de ingresso.

Terei o maior prazer em continuar a informá-la acerca deste assunto. Os melhores cumprimentos do

João Cachado