[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quinta-feira, 12 de março de 2009

Oliveira da Figueira

e o magalhães*

Comecemos por admitir ser perfeitamente plausível que, em determinadas circunstâncias, ocorram os designados erros ou acidentes de percurso, cujas causas, desde logo, se detectam através dos mecanismos de controlo que qualquer projecto pressupõe. Há que aceitar que a infalibilidade é coisa raríssima, e, mesmo a do papa, só funciona num quadro de excepção…

Todavia, neste nosso cada vez mais inviável país, tais acidentes deixaram de constituir aquilo que, noutras mais civilizadas paragens, evidencia contornos de coisa excepcional, para assumirem um perfil de extremamente preocupante regularidade, de quase normalidade, como se tivessem passado à condição de regra.

É neste contexto, com moldura tão sui generis, tão negativamente sugestiva, que se enquadra o mais recente e conhecido caso de trapalhice em que o actual Governo da Nação tem sido tão fértil. O próprio título deste texto vos dá a pista quanto ao objecto destas palavras, o famigerado computador magalhães,* já tão carregado de historietas e de sujidades mais ou menos profundas.

Em relação ao magalhães - que não passa de mera ferramenta de trabalho - determinou o deslumbramento patusco e provinciano dos nossos pategos decisores políticos que o tivessem alcandorado à condição de absolutamente indispensável às aprendizagens das criancinhas do ensino básico. Claro que não é. Claro que é grossa asneira e, como técnico de educação, professor, autor e co-autor de materiais didácticos, tenho obrigação de saber o que acabo de afirmar.

Dou de barato se a tecnologia é minoritária ou maioritariamente nacional, se a mão de obra nacional corresponde ou não a uma mais valia, a um valor acrescentado. Dou de barato se terão ou não havido vícios de concurso. E até dou de barato que tenha ocorrido algum favorzinho, cobrindo uma ou outra negociata, como tem vindo a público na comunicação social.

Igualmente, estou nada preocupado com a falta de cumprimento dos prazos de entrega. Mas, de todo em todo, não consigo admitir que, brincando com dinheiros públicos, uma série de incompetentes tenha contribuído para colocar nas mãos dos miúdos um instrumento de trabalho crivado de erros de Português. É incrível ainda que, infelizmente, não passe de mais um triste episódio a acrescentar ao desgraçado palmarés da equipa que ocupa os gabinetes da Cinco de Outubro.

Contudo, como poderíamos estar felizes da vida se o caso do computador magalhães constituísse caso único ou, pelo menos, absolutamente fortuito. É que, para além do tenebroso processo de avaliação dos docentes – a grande bandeira e prova real do insucesso e incompetência, não só do Ministério de Educação, mas também do próprio Governo em geral – há imensos casos, eu sei lá, um rol de asneiras de bradar aos céus.

Se alargarmos o leque a outras áreas da governação, imediatamente nos surgem os exemplos do Ministro dos Transportes e Obras Públicas com o sinuoso processo do Aeroporto e aquele leonino contrato da Liscont-Mota Engil, do amterior Ministro da Saúde que ia incendiando o país com a sua falta de senso, do Ministro da Administração Interna que não consegue definir uma estratégia para as polícias, do Ministro da Segurança Social que fez publicar o Código de Trabalho com grosseiros erros e omissões, do Ministro da Cultura que anunciou um forçado regime de Mecenato Cultural antes de terminadas as negociações, do Ministro das Finanças a braços com uma tremenda crise para a qual olha como boi para palácio…

Na maior parte dos casos, tudo vai acontecendo porque, no afã de apresentar muito, muito trabalho antes de terminar a legislatura, o governo não concede tempo bastante para que funcionem os mecanismos de controlo, avaliação e de certificação da qualidade dos projectos, da legislação que os enquadra e de outros relevantes pormenores. A propósito, nunca ouviram dizer que as cadelas apressadas pariram cachorros cegos?

Nos diversos ministérios, em vez dos técnicos, são os comissários políticos, contratados a peso de ouro, como assessores e consultores, para os gabinetes de Suas Excelências os Ministros e Secretários de Estado, que se encarregam, com a máxima celeridade, de atirar para a rua com mirabolantes produtos como o magalhães.

São as pressas, o frenesim, a imprepração, a falta de cultura do que é o nobre Serviço Público, a perspectiva empresarialista, no sentido mais pejorativo do termo, que estão a montante deste perfeito despautério que encheu as páginas dos jornais e ecrãs de telejornais do passado fim-de-semana. E, pelo andar da carruagem, o melhor é não ter grandes esperanças de mudança.

Vai continuar o salve-se quem puder e esta horrorosa mentalidade do dirigente que é tão habilidoso e sinuoso, tão chouriceiro e mixordeiro, como aqueles que dirige. Há séculos que assim é neste pobre país de analfabetos e habilidosos, que Hergé tão bem caracterizou no Senhor Oliveira da Figueira. Também por isso mesmo, há séculos que Portugal está em perda. Olhem, mais ou menos, desde o tempo de Fernão de Magalhães…


PS:

Já depois de ter escrito este texto, trouxe-me o correio a revista Ler no. 78, deste mês de Março, que publica uma notável entrevista, conduzida por Carlos Vaz Marques, a António Barreto. Nela afirma este nosso amigo:

"(...) Da maneira como o Governo aposta na informática, sem qualquer espécie de visão crítica das coisas, se gastasse um quinto do que gasta, em tempo e em recursos, com a leitura, talvez houvesse em Portugal um bocadinho mais de progresso. O Magalhães, nesse sentido, é o maior assassino da leitura em Portugal. Chegou-se ao ponto de criticar aquilo a que chamaram «cultura livresca». O que é terrível. É a condenação do livro. Quando o livro é a melhor maneira de transmitir cultura. Ainda é a melhor maneira. A coroa de todo este novo aparelho ideológico que está a governar a escola portuguesa - e noutras partes do mundo - é o Magalhães. Ele foi transformado numa espécie de bezerro de ouro da nova ciência e de uma nova cultura, que, em certo sentido, é a destruição da leitura. (...)"

Claro que não posso estar mais de acordo com esta opinião, que tão bem espalda as minhas palavras do quarto parágrafo do texto supra. Aliás, aconselho vivamente a integral leitura da entrevista, nas suas oito páginas de boa conversa, com alguém cuja lucidez nos habituámos a contar.

* Assim mesmo, grafado com minúscula. Como verificam, outra foi a opção da Ler.




2 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Cachado,

Estamos bem entregues à bicharada... O Dr. Medina Carreira com a sua autoridade tem dito o que não querem ouvir e ver as pessoas dos óculos cor de rosa. Como só diz verdades já lhe chamam pessimista militante. O Cachado também alinha pela mesma bitola mas esqueceu-se do Ministro da Economia que é cada cavadela minhoca.

Cumprimentos

Artur Sá

Anónimo disse...

Caro João Cachado,

Já li a sua resposta ao meu comentário sobre o Penedo da Saudade. Percebi pela sua resposta que agora a PSML tem a ver com a gestão de Seteais.
Quanto ao magalhães com minúscula como v. escreve, comparo o que o PM anda a fazer com o seguinte: distribui um carrito podre a estudantes que precisam de uma boa bicicleta, sendo ela professores com boa formação, com autoridade, escolas decentes e bem cuidadas e na primária onde têm de aprender a ler, escrever e contar.
Eu pensava que já trinha visto tudo com o Santana Lopes e a sua gente. Mas estes ainda foram mais ao fundo. Parece impossível mas ainda conseguiram ser piores.
Tenho quase setenta anos, quatro netos enão vejo futuro para eles. Acredite que é um desgosto enorme.
Concordo totalmente com o Sr. Artur Sá e sua opinião anterior. O Dr. Medina Carreira já disse dezenas de vezes que o rei vai nu mas ninguém ouve.
Desculpe os lamentos.

Carlos Mena