Bartolomeu,
que saudade!...
No que respeita à actividade cultural em geral, e, mais especificamente, em tudo quanto se relaciona com atitudes que, inequivocamente, contribuam no sentido de fazer perdurar a memória dos artistas que amaram Sintra, viveram e, de modo especial, se relacionaram com esta terra, já se sabe que, salvo raríssimas excepções, não se pode contar com a Câmara Municipal.
Veja-se, por exemplo, o caso de Bartolomeu Cid dos Santos. Todos os que acompanham as páginas deste blogue, sabem do especial apreço pelo homem que foi meu amigo e pela obra do artista cujo nome é de máxima grandeza nas artes plásticas e Cultura Portuguesa contemporânea, reconhecido como tal em todo o mundo civilizado.
Enfim, não será assim por todo o lado porque há quem desconheça que Bartolomeu é tão grande como Paula Rego. E basta pensar nestes dois artistas, articulando o primeiro com Sintra e a segunda com Cascais para concluir por onde, a nível dos respectivos executivos autárquicos, andará o esclarecimento e a falta dele.
Se, em Cascais, a respectiva Câmara Municipal tem feito pela pintora tudo o que é possível para a merecer, o mesmo não sucede em Sintra, onde, olimpicamente, a autarquia ignora Bartolomeu Cid dos Santos, que foi nosso vizinho na Vila Velha, ali tendo habitado uma casa cheia de especiais recordações, à Fonte da Pipa.
Bem enraizada, ali para os lados da Rua do Roseiral, a institucional e sintrense ignorância acerca da excepcional valia de Bartolomeu não alastrou, felizmente, a outros concelhos limítrofes, como o de Oeiras. Nem mais. Para o efeito de vos dar conta de que assim é, desde já me socorro de informação oficial daquela autarquia que passo a transcrever:
“O CAMB - Centro de Arte Manuel de Brito apresenta Bartolomeu Cid dos Santos e Going South, de 30 de Janeiro a 16 de Maio de 2010.
Neste bloco expositivo consagrado à memória do artista Bartolomeu Cid dos Santos, falecido em 2008, o CAMB apresenta, a par de uma mostra individual de obras do artista na Colecção Manuel de Brito, um projecto expositivo autónomo designado “Going South” que reúne um conjunto de trabalhos (fotografia e escultura) desenvolvidos por cinco artistas contemporâneos que lhe prestam tributo: John Aiken, Miguel Martinho, Ana João Romana, Samuel Rama e Valter Vinagre.
Dando continuidade à linha de programação expositiva que tem visado divulgar os artistas mais representativos ou mais emblemáticos da Colecção Manuel de Brito, este bloco expositivo tem particular simbolismo, atendendo à ligação que o artista Bartolomeu Cid dos Santos tinha ao Palácio Anjos, por ter sido este o local onde viveu a sua infância e onde aprendeu a desenhar.
Nesta exposição individual é apresentada sobretudo gravura, produzida pelo artista entre a década de 50 e a actualidade. (…)” O CAMB está localizado no Palácio Anjos, Alameda Hermano Patrone, em Algés (…)”
Em Algés, sob a égide da Câmara Municipal de Oeiras.
Senti hoje grande saudade deste querido amigo que Sintra tarda a homenagear. Provavelmente, porque, mais uma vez, passei pela Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais, e, como acima dei a entender, não podia ter deixado de comparar. À minha medida, de vez em quando, vou lembrando o Barto. Por isso vos peço licença para, já de seguida, voltar a colocar, na primeira página, o texto que escrevi em 26 de Maio de 2008, poucos dias depois da sua morte.
NB:
Neste blogue, sobre Bartolomeu Cid dos Santos, ler os textos publicados em 26.05.08, 03.07.08, 24.09.09, 27.11.09
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Bartolomeu Cid dos Santos
(1931-2008)
Na passada quarta-feira, dia 21, morreu em Londres Bartolomeu Cid dos Santos. Ia nos setenta e seis anos, solto das coordenadas do tempo, um menino, é verdade, grande e gordo, amante das boas coisas da vida e preocupado com as mais sérias questões da vida. Venho contar-vosda nossa relação de amizade, indissociável do comum amor a Sintra.
Naturalmente, a outros deixo as referências biográficas deste grande nome da arte portuguesa contemporânea. Todavia, imperioso se revela abordar um ou outro aspecto da vida do homem e do artista, especialmente porque tive o privilégio de beneficiar do seu encanto, em doses inesgotáveis, na sábia sedução que imprimia às conversas pelos caminhos da Arte.
Desde logo, mencionaria o pai, o famoso médico Prof. Cid dos Santos, conhecido humanista, homem de grande cultura, a quem o filho muito viria a dever por toda uma formação e educação direccionada para as artes e humanidades. O Bartolomeu menino estudou, por exemplo, música e alemão, absolutamente determinantes para que, mais tarde se revelasse o inevitável melómano em que se tornou.
Apetecia reproduzir episódios que me contou da sua meninice, tantos e tão ilustrativos desse tempo em que, por ser filho de quem era, pôde contactar a fina flor da intelectualidade portuguesa e internacional, nas salas e à mesa da sua casa ou em viagens inesquecíveis e únicas. Como certa deslocação a Paris, com o pai, por essa estrada fora, no automóvel da família, parando em Espanha, a visitar o médico e escritor Gregorio Marañon, em cuja casa foi descobrir uma autêntica e surpreendente galeria, com obras dos mais notáveis artistas, recentes e de épocas passadas.
Um grande melómano
Comigo, Bartolomeu partilhava o gosto pela música. Quando percebeu que, tal como para ele, a língua alemã é, também na minha perspectiva, instrumento inseparável do acesso a particularidades do universo de Wagner, concluiu que podia confessar-me as suas mais remotas experiências pessoais e directas, ainda miúdo, por exemplo, com a Tetralogia do compositor de Bayreuth.
Em especial, falou de certa récita do Siegfried que assistira em São Carlos, em plena guerra, quando o mítico maestro Knappertsbusch veio a Lisboa dirigir a Filarmónica de Berlin, na mesma oportunidade em que alguns músicos desta orquestra tinham jantado em sua casa… Se isto não é privilégio, então desconheço o que isso seja. Mas compreendo que, por causa das invejas, apenas se conte aos iniciados…
Com ele, a conversa nunca era coisa gratuita e, pelo contrário, sempre estimulante e oportunidade para saber mais. Melómanos inveterados, envolvemo-nos em discussões muito vivas e interessantes. Não raro, tive de recorrer à mais diversa documentação e bibliografia, para sustentar ou corrigir alguma opinião, dele ou minha, para esclarecer qualquer dúvida pertinente.
Neste domínio, em diferentes ocasiões, cheguei ao ponto de incomodar um grande amigo, o Dr Mário Moreau que, com o seu enciclopédico conhecimento do mundo da ópera, nos ajudou a clarificar aspectos mais ou menos obscuros que, também frequentemente, se revelavam altamente desafiantes, em diálogos sem fronteiras, em que toda a Arte, desde a poesia, à pintura, à gravura, à música, em que a política e, particularmente, a participação cívica se articulavam em coerente mosaico.
Sintra, uma preocupação
Contudo, muito sintomaticamente, o que nos fez aproximar não foi a melomania. Deu ele o primeiro passo, precisamente por intermédio do Jornal de Sintra, através de um artigo que subscreveu, em simultâneo com uma carta que me dirigiu, a propósito do estado lamentável do centro histórico, coisa que ele sentia na pele, na medida em que a sua casa, nas Escadinhas da Fonte da Pipa, constituía ímpar ponto de partida para a melhor avaliação.
O Bartolomeu era homem de esquerda, senhor de fortes convicções políticas. Como alguns de nós, mas contra a opinião dos mais poderosos, acreditava na capacidade de mudar a polis, através da participação em lutas de intervenção cívica, na possibilidade de viver uma vida democrática que ultrapasse a retórica dos discursos inconsequentes e se comprometa com as pessoas, com os seus problemas reais e concretos.
Uma das causas que mais o mobilizava era a da defesa e preservação do património, questão bem real e concreta que, inequivocamente – se for perspectivada numa actuação integrada e abrangente – pode contribuir para a mudança em geral e para a melhoria da qualidade de vida em particular. Se alguma prova necessária fosse, demonstrativa do seu empenho, bastaria recordar o apoio pessoal à iniciativa da discussão dos problemas do bairro da Estefânea. Tive-o, exactamente ao meu lado, na mesa que conduziu o aceso debate daquele dia 22 de Março de 2004…
Tinha a família entranhada em Sintra há várias gerações, não estava sempre por aqui mas, quando estava, adorava. E, muito naturalmente, também sofria, como só pode quem assiste à contínua degradação desta sede de concelho que, afirmava ele constantemente, merece outro cuidado, uma gestão adequada às características, ao perfil e ao espírito do lugar.
O artista empenhado
Era um grande senhor da Cultura Portuguesa dos nossos dias. Há mais de cinquenta anos, fundara a Gravura, sociedade cooperativa de artistas gráficos que, em termos concretos e práticos, constituía uma entidade cujos objectivos eram afins da sua postura e filiação política. Como lembrava José Cutileiro, no Expresso do sábado passado, pelos seus dezassete anos, Bartolomeu era já um jovem comunista, capaz de pôr a tocar A Internacional, no ‘pick up’ aos berros, em manobra provocatória…
Mesmo em termos internacionais, Barto – como era conhecido lá por fora – é um nome incontornável da gravura, tão grande e significativo que os ingleses lhe souberam reconhecer o enorme mérito, admitindo-o como professor da célebre Slade School of Fine Arts de Londres, já no princípio dos anos sessenta, ali se mantendo até noventa e seis, altura em que se aposentou. Altamente honrosa, a sua nomeação como professor emérito de Arte da Universidade de Londres e membro da Real Sociedade Britânica de Pintores e Gráficos.
Detentor de um currículo espantoso, foi professor convidado e consultor de várias universidades europeias, fez inúmeras exposições por esse mundo. A fundação Gulbenkian que, como é sabido, não dá ponto sem nó, e só mesmo aos muito grandes dá a honra da promoção de exposições retrospectivas, concretizou uma sobre a obra de Bartolomeu Cid dos Santos cuja concepção era extremamente interessante, tendo constituído assinalável sucesso.
Que homenagem?
Em cerca de três meses, deixaram-nos dois nomes máximos das Artes e Letras portuguesas. Só a sintrense universal incultura se pode permitir não dar o devido destaque à perda de Maria Gabriela Llansol e Bartolomeu Cid dos Santos. Pensar que a sua memória se honra com o minuto de silêncio da ordem, não passa de brincadeira com coisas sérias…
Aliás, depois de tão atrabiliárias concessões de medalhas de ouro do concelho, a figuras totalmente insignificantes cá do burgo, também não imagino o que poderá a Câmara fazer… Uma coisa eu sei, que várias vezes me confessou. Dar-lhe-ia muita alegria ver recuperada a casa de Mily Possoz [será que esta gente dois serviços alguma vez ouviu falar dela?...], outra grande mas esquecida artista, que morreu em Sintra em 1967. Era sua vizinha. Se for necessário, podem contar comigo para lá ir indicar onde fica.
Cá por mim, à guisa de pessoal celebração, mal acabe de escrever este texto, tenho preparado o leitor de CD para ouvir o Acto III de Götterdämmerung (Crepúsculo dos Deuses) de Richard Wagner. Vou escutar este sublime momento da ópera, sob direcção e na leitura de Sir Georg Solti, 1973, dirigindo a Filarmónica de Viena, em que Birgit Nilson, Wolfgang Windgassen, Dietrich Fischer-Dieskau, Christa Ludwig Luccia Popp, e Gwyneth Jones assumem, respectivamente, as personagens de Brünnhilde, Siegfried, Gunther, Waltraute, Woglinde e Wellgunde.
O Bartolomeu tinha esta versão em lugar altíssimo. Para mim, constitui referência máxima. Neste ramalhete das maiores estrelas, há interpretações inultrapassáveis, perfeitamente paradigmáticas, intemporais. Ah, vou acompanhar a audição bebendo um Collares que, pois claro, já está aberto, já foi provado e aprovado. E tenho a certeza de que o Bartolomeu também aprovará esta minha celebração da Vida, da Arte e da Cultura (maiúsculas, à alemã…) com um copo do nosso melhor vinho.
À nossa querida Sintra! Até já, Bartolomeu…
4 comentários:
Caro Dr. Cachado,
Estas suas chamadas de atenção está visto que não resultam. Deixe lá, não se incomode mais porque isto é mesmo uma tera de ignorantes. Talvez o Dr. Seara leia e como agora também tem o pelouro da cultura faça qualquer coisa.
D. Amaral
Meu caro João Cachado,
Esta sua crónica mostra bem o panorama das "forças vivas" de Sintra, melhor dizendo, das forças cinzentas que aparecem por aí consoante as circunstâncias.
Pessoa amiga e da maior confiança, garantia-me que o Homem ilustre que era o Bartolomeu Cid dos Santos não era um simples militante de esquerda, era-o - até - de um partido político que em tempos era a vanguarda da classe operária. Seria de esperar que o nome de Bartolomeu Cid dos Santos merecesse uma proposta dessa força política, infelizmente em Sintra mais adaptada a uns lugares de Administração que, em termos práticos, a silenciam. E como é bom ter essas mordomias, provavelmente para minarem o inimigo por dentro.
Depois temos, também, a sua antiga sugestão da toponímia da Volta do Duche passar a incluir "Espaço Llansol". Ninguém parece ter pegado na sugestão, nem o espaço do mesmo nome, nem aqueles convidados que aparecem - certamente com honrosos convites - nas celebrações e descerramento de lápides ou placas.
Este um triste exemplo do que é Sintra e de como se vivem os sentimentos culturais.
Fernando Castelo,
meu caro amigo,
De facto, o Bartolomeu era comunista e era-o de uma maneira visceral. Não precisava de apregoar tal condição, era coisa discreta mas evidente. E, caro amigo, tenho de assinalar que a CDU de Sintra, no mesmo dia em que eu próprio fui à Assembleia Municipal solicitar que a Câmara lhe fizesse a justa homenagem, a CDU, escrevia eu, apresentou uma proposta no sentido de que a Casa da Cultura de Mira Sintra, então recém inaugurada, passasse a ostentar o nome do Bartolomeu como patrono. Naquela altura, o Presidente da Junta de Freguesia informou que levaria a proposta à apreciação dos fregueses para que, posteriormente, estivesse habilitado a acolher a sugestão.
Como era de esperar, nunca mais soube de qualquer desenvolvimento...
E a Câmara Municipal de Sintra, com o seu proverbial sentido de oportunidade, mandou às urtigas o meu pedido, certamente embrulhado no mesmo ordinário papel em que seguiu a sugestão da CDU, o lixo e o aterro de Trajouce... Entretanto, Oeiras, como se vê, não perde a oportunidade de divulgar a sua obra enquanto os serviços culturais da Câmara de Sintra andam entretidos com iniciativas de quinta categoria...
Quanto à minha sugestão, de acrescentar à toponímia actual de Volta do Duche, a designação de Caminho Llansol, passando a ler-se, se aceite o alvitre, "VOLTA DO DUCHE - CAMINHO LLANSOL", não tenho qualquer eco. Não sei se o Espaço Llansol, nomeadamente, o Prof. João Barrento, teve conhecimento. O que me parece é que aquela lembrança, junto ao plátano, passa completamente desapercebida e que a Maria Gabriela merecia ter homenagem mais visível, num dos trechos de Sintra que ela mais tinha no coração, a Volta do Duche, pela manutenção da qual se bateu, em atitude cívica ineqwuívoca, escrevendo o belíssimo texto que tive oportunidade de re-publicar por duas ou três vezes.
Como calcula, para mim, tudo isto é um desconsolo enorme. Por enquanto, Sintra é este deserto cultural. Podia aprender alguma coisa com Cascais, aqui tão perto. Porém, nem essa veleidade alimento...
Um abraço
João Cachado
Peço desculpa porque no meu texto anterior queria dizer "Caminho Llansol" e errei falando em "espaço Llansol".
Espero me releve.
Fernando Castelo
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