[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Caridade na Verdade

No quadro das maiores preocupações de qualquer pensador verdadeiramente humanista, não deve haver matéria mais determinante e mobilizadora do que o modo como se processa o envolvimento da técnica no desenvolvimento dos povos. Em 1967, o então Papa Paulo VI, apenas três meses antes de se ter deslocado a Fátima, publicara a Carta Encíclica Populorum Progressio, entusiasticamente acolhido pelo grupo dos jovens católicos progressistas em que me integrava.

Desde então e, ouso afirmar, remontando ao pontificado de Leão XIII que, com a Rerum Novarum, apontou as linhas mestras da moderna doutrina social da Igreja para o futuro, ainda nada aparecera, neste específico domínio tão decisivo para o bem estar do Homem, como a última Encíclica do actual Papa, assumindo o modo mais libertador que é possível equacionar.



“(…) O tema do desenvolvimento dos povos está intimamente ligado com o do desenvolvimento de cada indivíduo. Por sua natureza, a pessoa humana está dinamicamente orientada para o próprio desenvolvimento. Não se trata de um desenvolvimento garantido por mecanismos naturais, porque cada um de nós sabe que é capaz de realizar opções livres e responsáveis; também não se trata de um desenvolvimento à mercê do nosso capricho, enquanto todos sabemos que somos dom e não resultado de auto-geração.

Em nós, a liberdade é originariamente caracterizada pelo nosso ser e pelos nossos limites. Ninguém plasma arbitrariamente a própria consciência, mas todos formam a própria personalidade sobre a base de uma natureza que lhes foi dada. Não são apenas as outras pessoas que são indisponíveis; também nós não podemos dispor arbitrariamente de nós mesmos. O desenvolvimento da pessoa degrada-se, se ela pretende ser a única produtora de si mesma. De igual modo, degenera o desenvolvimento dos povos se a humanidade pensa que pode recriar-se valendo-se dos “prodígios” da tecnologia. Analogamente, o progresso tecnológico revela-se fictício e danoso quando se abandona aos “prodígios” das finanças para apoiar incrementos artificiais e consumistas.

Perante esta pretensão prometeica, devemos robustecer o amor por uma liberdade não arbitrária, mas tornada verdadeiramente humana pelo reconhecimento do bem que a precede. Com tal objectivo, é preciso que o homem reentre em si mesmo, para reconhecer as normas fundamentais da lei moral natural que Deus inscreveu no seu coração.(…)”

Caritas in Veritate
Carta Encíclica de S.S. Bento XVI,
Roma, 29 de Junho de 2009, pela solenidade de São Pedro e São Paulo


Trata-se de brevíssima citação de um texto clarividente que, de novo, veio repor a caridade na acepção mais conveniente, na corajosa afirmação dos problemas que não são só deste mas de todos os tempos, tal o caso do desenvolvimento do indivíduo e dos povos em articulação harmónica com a técnica.

É esta a reflexão que me ocorre suscitar, no dia seguinte ao que, para visita pastoral aguardada com uma extraordinária expectativa, chegou a Portugal o seu autor. Com a inequívoca autoridade de referente universal, de líder espiritual, acutilante teólogo e filósofo, Bento XVI é, para nosso privilégio de católicos, o Papa que, desde João XXIII, não só mais nos tem interpelado, como cristãos, mas também mais tem desafiado o homem à necessidade da reflexão afim da redescoberta de si próprio.

Desafio de sempre, é coisa para ser respondida por cada um, durante o tempo que lhe cabe na páscoa [passagem] da vida. Sem dramas, sem precipitações ou confusões, fruto da ousadia de pensar que, questões de sempre, vão ser resolvidas neste tempo, só porque este tempo é o que nos coube viver…

PS:

Fui ontem participar na missa do Terreiro do Paço. Que coisa espantosa o silêncio. Que coisa surpreendente o silêncio enamorado de uma multidão. Tal como nas divinas obras de Arte, no poema, na peça musical, o silêncio, a suspensão, a pausa, o silêncio integrante da mensagem, do todo que ali se viveu, num inesquecível entardecer da cidade.



4 comentários:

Anónimo disse...

Não assino para não o embaraçar. Sei que é maçon. Como conjuga o seu catolicismo com a maçonaria? E este dueto pouco harmónico com o amor pelos touros?
Você é um homem de Letras, conhecido melómano, ilustre técnico de Educação, professor de sucesso, mas uma caixinha de surpresas. Gosto muito de o ler. Como católico também estou completamente rendido ao «nosso» Papa Bento.

Leitor atento e obrigado.

Jorge Casas disse...

A propósito da visita do Papa, a nedota de hoje vai para o primeiro ministro, à saída da Nunciatura Apostólica. Referindo o Papa, disse "Sua Eminência" (seis vezes). Disse que tinha assistido à missa da sua "coroação" antes do início do seu "mandato". Em meia dúzia de frases sem o mínimo interesse demonstrou que não sabe que o Papa é tratado por Santidade (como qualquer lider espiritual máximo de qualquer religião) que não é coroado e que iniciou um pontificado. Demonstrou ignorância e falta de preparação para tratar com alguém que representa mais portugueses do que qualquer lider político. Mas não é surpresa porque já estamos habituados. Só tem jeito para as habilidades que viemos a conhecer a propósito da licenciatura, das belas casas para os amigos, etc,.

Jorge Casas

Anónimo disse...

Uau....e isso tem uma importância enorme para o comum dos portugueses...Aliás, a maior parte dos católicos também conhece esses termos e além disso, é isso que os preocupa neste momento.Tenham dó!Preocupem-se com o que é relevante, deixem o acessório!

Sintra do avesso disse...

Na realidade, relativamente à questão do progresso dos povos, o que tem causado maiores entraves é uma tremenda confusão de objectivos.

Dificilmente caminharemos para aquilo que se considera o progresso harmónico do Homem, para o desenvolvimento integrado dos povos - e não para o crescimento económico "tout court" - enquanto o objectivo for ter mais coisas.

Depois de alcançado o patamar de satisfação das necessidades fundamentais e de bem estar, afins de uma vida sã e equilibrada, que, tão significativamente, ultrapassam o que se considera limiar da pobreza, o grande objectivo só pode ser o «ser» em oposição ao «ter» mais.

Em última análise, relevante, essencial, será a escolha dos domínios de actividade que, de acordo com um trabalho profícuo e boa gestão, hão-de proporcionar o alcance da riqueza colectiva indispensável, a sábia distribuição dos bens, para que seja possível a felicidade individual e comum.

Se o Papa da Igreja Católica Apostólica Romana, o Dalai Lama e todos os outros líderes espirituais da Humanidade não derem prova de preocupação com tais linhas mestras do caminhar do Homem, quem o fará? Os grandes pensadores, certos filósofos particularmente argutos? Pois sim. De vez em quando, até aparecem líderes políticos como, Mandela, Ghandi - ao fim e ao cabo, verdadeiras santidades - que apontam a esperança mais animadora.

Mas, infelizmente, como bem temos visto ultimamente na Europa, o mais certo é que, longe dos mecanismos que conduzem à lucidez, os cidadãos continuem a eleger, perversa mas democraticamente, os medíocres, ridículos mas perniciosos Sócrates que aparecem na Ágora, descidos das berças remotas, armados em salvadores da Pátria. Esses, de certeza, jamais souberam ou saberão distinguir o essencial do acessório...


João Cachado