para quando um Festival assim?
A tão controversa quanto ilógica programação dos denominados contrapontos, mais uma vez, acabou por transformar a edição de 2010 do Festival de Sintra em manta de retalhos, sem qualquer ponta por onde se lhe pegasse. Como sabem, para tal peditório já eu muito contribuí e em dose desproporcional ao gabarito da iniciativa... Por isso, mais nada acrescento aos textos já neste ano publicados no sintradoavesso [08.03.10, 05.04.10, 04.05.10 e 24.05.10].
Póvoa de Varzim, Espinho, Óbidos e Estoril, depois do sensacional Alcobaça, continuam a somar sucesso cada vez mais assinalável. Entretanto, se alguma dúvida existisse em relação à pertinência daquilo que tenho escrito, sobre festivais que abrangem os mais diversos suportes artísticos, explorando um núcleo temático de afinidades, aí está, já em segunda edição, o Festival da Quinta das Lágrimas, em Coimbra, verdadeiro paradigma nacional da lógica e coerência interna de programação. *
Uma vez definido o tema central desta segunda edição – Água – eis que a organização desenvolve a programação em diferentes ciclos, nos seguintes termos, que passo a transcrever:
Ciclo da Música
A história da música será representada desde o século XVIII (Handel, Telemann e dall’Abaco, Gluck, Mozart) até à actualidade (António Pinho Vargas, Angles), passando por uma diversificada galeria de notáveis criadores musicais histórica e/ou esteticamente radicados no século XIX (Haydn, Beethoven e Schubert; Chopin e Liszt; J. Strauss e Offenbach; Wagner, Mahler, Verdi e Puccini) e da(s) modernidade(s) que explode(m) no século XX (Debussy; Ravel e Chausson, Sibelius, Orff, Berio, Ligeti e Stockhausen), para além da evocação, em jeito de boas-vindas a Coimbra, de nomes como Luís Goes, José Afonso e Virgílio Caseiro.
Para a reinvenção deste reportório, e para além das boas-vindas a cargo da Orquestra Clássica do Centro e do Coro dos Antigos Orfeonistas dirigidos por Virgílio Caseiro, visitarão o Festival o Concerto Köln, a Orquestra Gulbenkian dirigida por Joana Carneiro e a Orquestra Metropolitana de Lisboa, dirigida por Cesário Costa, os pianistas Pedro Burmester, Etsuko Hirosé, Miguel Henriques e António Pinho Vargas, as cantoras Ana Quintans e Sónia Alcobaça, o Quarteto de Cordas de Matosinhos e o coro Lisboa Cantat. Assinale-se, ainda, a visita da Orquestra Geração durante a qual será divulgado o projecto social que a integra.
Ciclo da Coreografia
No âmbito coreográfico, têm lugar no Festival
“O auto da barca do Inferno” de Gil Vicente (séc. XVI) numa produção do TEUC (Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra);
“Maiorca” pela Companhia Paulo Ribeiro (séc XXI), sobre os “24 prelúdios” de Chopin.
Ciclo de Cinema
O cinema clássico será ilustrado por duas obras emblemáticas entre os filmes que misturam exemplarmente drama e aventura:
“Revolta na Bounty” de Frank Lloyd (1935);
“A rainha africana” de John Huston (1951).
Em contraponto, cabe a “Respirar (debaixo de água)” de António Ferreira (2000) representar o actual cinema português. E haverá espaço para o documentário “Oceanos” de Jacques Perrin (2009).
Ciclo da Palavra
A palavra escrita será representada por leituras de
“Carta de Pêro Vaz de Caminha” (séc. XV) por André Gago e Carlos Barretto.
“A menina do mar” de Sophia de Mello Breyner (séc. XX) por Beatriz Batarda, com música original de Bernardo Sassetti.
Ciclo das Artes Plásticas
Nos domínios das artes plásticas, estarão em permanência, durante todo o período do Festival, 4 exposições:
“Do mar profundo”, sobre ilustrações de Miguelanxo Prado para o seu filme “De Profundis”;
“Valsamar”, instalação de António Barros, a partir de um texto de José Tolentino Mendonça.
“Curtas sobre a Água: Messages”” com projecção de 11 filmes de vídeo, produzido pela Dupla Cena.
“Imaginário da Paisagem”, colecção BESart, curadoria de João Silvério.
Ciclo da Vida
A água como motora civilizacional e elemento de sustentabilidade ambiental incluirá:
“O rosto da água” de Viriato Soromenho Marques (água e civilização);
“Inventar a água”, projecto escolar sobre “A Menina do Mar” de Sophia de Mello Breyner;
“E a água aqui tão perto” com participação de Helena Freitas, Nelson Geada e Francisco Manso, com participação de Rui Ferreira dos Santos;
“As águas dos rios”com participação de Francisco Nunes Correia, Neves de Carvalho e Paulo Constantino, com participação de João Pedro Rodrigues;
“Água e Património” (projecto escolar).
Ciclo do Património
Finalmente, o festival proporciona um ciclo do património que será preenchido com 4 propostas:
“Por este rio acima”, percurso no Mondego a bordo do barco “Basófias” com música jazz ao vivo,
“Coimbra, um outro olhar”, percurso na cidade com apontamentos cénicos da Casa da Esquina
“Dos vinhos em volta” (visita à Quinta do Encontro em S. Lourenço do Bairro – Anadia)
“Desta água que corre” (visita ao complexo termal do Luso, Palácio do Buçaco e envolvente).
Ciclo da Gastronomia
Integra também o programa do Festival um ciclo gastronómico que inclui 3 jantares “gourmets”, confeccionados por:
Santi Santamaria, Ana Moura com apoio de Joachim Korper e Vítor Dias com apoio de Albano Lourenço,
Completa o ciclo a conferência “Sabores e luxúrias” de José Bento dos Santos sobre água e gastronomia.
Ciclo da Esperança
“Inventar a água”, Exposição permanente –trabalho de ilustração criativa por crianças dos 3 aos 5 anos.
“Correntes de Esperança” – Projecto da Orquestra Geração dirigida por Osvaldo Ferreira.
“Contos à volta do lago”, selecção de histórias para crianças pela Camaleão Associação Cultural.
“Regata Barco-Dragão”, no rio Mondego, organizada pela Câmara Municipal de Coimbra com a Associação Naval Amorense
Ciclo das Conferências
“Uma gota no Oceano” de Leonor Nazaré (água e representação)
“Marcas da água” de Alexandre Ramires (água e paisagem urbana).
“Águas mil” de Jorge Calado (água e fotografia),
“Desenhar a água” de João Miguel Lameiras (água e banda desenhada)
“Águas filmadas” de Abílio Hernandez (água e cinema).
“Os 4 rios do Paraíso” de Cristina Castel-Branco (água e arquitectura)
Escusado será confirmar que, a partir de hoje e até 1 de Agosto, antes de partir para Bayreuth, estarei em Coimbra sempre que puder. Como é de calcular, uma proposta com este calibre - já a primeira, no ano passado, subordinada ao tema Noite, foi extremamente atractiva - pressupõe uma equipa que não deixa os seus créditos por mãos alheias. Reparem nos responsáveis e principais colaboradores:
Manuel Ivo Cruz é o Presidente, enquanto que a Direcção é partilhada por
Cristina Castel-Branco, Ilda Rodrigues, José Miguel Judice, Luis do Amaral Alves, Luisa Braz de Oliveira, Margarida Mendes Silva, Nuno Antas de Campos, Pierre Lavoix, Teresa Costa Neves, contando ainda com a colaboração de Abel Moura Pinheiro, Andrew Swinnerton e António Mega Ferreira.
Pois é, tudo gente de primeira água, que não estamos habituados a ver envolvidos em projectos de fancaria ordinária.
Enquanto o Festival de Sintra contou com equipas de qualidade análoga, o produto jamais se degradou. Durante décadas, coisa inimaginável seria o nível do descalabro de que venho dando conta nos anos mais recentes, opinião partilhada por imensos leitores. No meio do destempero, tenho a maior pena que, tanto o Dr. Luís Pereira Leal como Mestre Vasco Wellenkamp consintam que o seu trabalho se misture com o resto.
De qualquer modo, não tenho a menor dúvida de que, muito rapidamente, será possível recuperar a excelente reputação de que gozou o Festival de Sintra ao longo de tantos anos. Como escrevi há uns meses, soube que o Senhor Presidente da Câmara está preocupado com a situação. Basta que manifeste ele vontade nesse sentido e tome as medidas que se impõem - não sendo necessárias mais verbas do que actualmente - para que tudo se recomponha.
Então, Sintra não merece?
* http://www.festivaldasartes.com/
[o sítio é estupendamente concebido, uma lição de eficácia]
7 comentários:
Meu Caro João,
Fizeste muito bem transcrever todo o programa do que se passa este ano na Quinta das Lágrimas. Só assim fica bem demonstrada a razão que tens tentado transmitir com tanta competência. Na realidade, o Festival de Coimbra tem todas as qualidades que apontas e mais uma: servir de modelo a essa gente que deu cabo do Festival de Sintra. Mais uma vez, Coimbra é uma lição...
Abraço
José João M. S. Arroz
Caro Dr. João Cachado,
Acompanho o seu blogue e as suas notas acerca do Festival de Sintra. Com os seus conhecimentos é uma pena que não o chamem para a organização.
Como já percebi que vai para Bayreuth, quando voltar fico (ficamos) à espera dos seus comentários sobre as óperas que vai assistir. Infelizmente, eu só posso ver o site... Deve ser um deslumbramento. Cumprimentos, Carlos Tovar
Caro Carlos Tovar,
Só depois de ler o seu comentário, me dei conta de que o último parágrafo do meu texto era susceptível de induzir interpretação análoga à que o Tovar dá conta, ou seja, de que poderia eu estar a candidatar-me a qualquer coisa...
Por isso me apresso a esclarecer o que se afigura inquestionável. Porém, primeiramente, agradeceria
a confiança que deposita na minha eventual competência para a organização de um festival. Mas, meu amigo, nada de confusões.
É um facto que tenho uma experiência de muitos anos de frequência dos festivais nacionais e internacionais mais interessantes. Mas, como compreenderá, isso não me confere qualquer especial capacidade organizativa de iniciativas congéneres.
Há muita gente que me ouve, que me honra muito com a consulta acerca de assuntos afins da organização de iniciativas culturais. Essa possibilidade de partilha de conhecimento e da experiência que vou acumulando em Salzburg, Bayreuth, Luzern, Lugano, Schwezinger, Schleswig, Leipzig etc, não só me honra mas também é quanto me basta.
Há, de facto, quem esteja cada vez mais interessado em ouvir o meu testemunho, na primeira pessoa, acerca dos festivais onde tenho o privilégio de ver e ouvir o que há de melhor no domínio da música, em todas as suas vertentes, interagindo com todos os fenómenos e suportes culturais com os quais se relaciona. Escrevo-o sem presunção.
Infelizmente, tal não acontece em Sintra. E, já agora, respondo àquele seu repto sobre a hipótese de colaborar na organização do festival, com um conselho do meu querido e saudoso pai: "Há pessoas com quem nem à Santa Missa se vai..." Confesso que, para meu prejuízo, nem sempre o tive em consideração mas, com o passar dos anos e experiência acumulada, reconheço a imensa sabedoria da sentença.
Outra coisa que ele me dizia, acabava por se revelar muito afim do que acabo de recordar, indo no sentido de que todo o indivíduo deveria cuidar de vender o seu trabalho, tão somente, a quem o merecesse, a quem, pelo menos, partilhasse nível idêntico.
Sabe, Caro Tovar, eu estou nessa. Sem presunção, repito, estou mesmo muito selectivo quanto às companhias...
Abraço
João Cachado
Eu fui uma das pessoas
que tiveram a infelicidade
de assistir à ópera que
encerrou o festival de Sintra.
Sei pouco de ópera
mas o bastante para perceber
que aquilo que vi
não se apresenta a público nenhum, foi um desrespeito muito grande. Na realidade,o festival
chegou a um ponto
de degradação que nunca esperei.
O Dr. Cachado tem toda a razão. Aquilo não tem proveito para ninguém. Estava gente
ao pé de mim que nunca
tinha visto uma ópera
e não foi assim que aprendeu qualquer coisa. Alguém tem que fazer qualquer coisa
para que coisas destas não se repitam no festival de Sintra. Sintra não é o refugo.
Ester Levi
Não há dúvida que o João Cachado é das pessoas que, em Portugal, tem melhor informação acerca da organização de festivais culturais. A confirmar isso mesmo, acabo de ler na revista "Visão" a opinião do professor universitário, poeta, romancista e tradutor Frederico Lourenço acerca do feswtibal que o João Cachado considera ter a melhor programação em Portugal.Escreve ele o seguinte:
«Coimbra em Alta. Ainda melhor do que a primeira é a segunda edição do Festival das Artes da Fundação Inês de Castro, na Quinta das Lágrimas e noutros locais de Coimbra. Programação aliciante e variada (...)».
Esta opinião é um grande aval para o artigo do João Cachado. Ele até pode escrever que não se quer envolver com certas pessoas que têm estragado o Festival de Sintra. Entendo completamente o que deve sentir perante a ignorância que afirma com tanta reazão. Se não quer, não vá à missa com elas. Mas se as coisas mudarem, julgo que deve dar a sua colaboração se lha pedirem.
FS
RESPOSTA A FS:
Muito obrigado pelas suas tão simpáticas palavras. Ainda bem que o Frederico Lourenço partilha a minha opinião. Conheço-o pessoalmente, desde miúdo. Conheci o seu pai e fui colega e amigo da mãe. As Letras, especialmente no âmbito das Clássicas, já lhe devem trabalhos inestimáveis, como as suas traduções directas do grego. Como homem da Literatura, é um autor com uma voz muito singular e, para além de todos estes atributos, é um melómano respeitadíssimo e um verdadeiro artista, que toca maravilhosamente, alguém que poderia ter feito uma carreira musical de grande nível.
Já fui ler a rubrica da "Visão" a partir da qual FS transcreveu a opinião sobre o Festival da Quinta das Lágrimas. Aproveito a oportunidade para repetir o que afirmei, não deixando de sublinhar o alto nível cultural da proposta que não faz a mínima concessão a qualquer solução de facilidade.
Os designados "contrapontos" de Sintra são uma caricatura grotesca que, em relação ao que Coimbra propõe, sugere e suscita, apenas podem ocupar uma posição, ou seja, a dos antípodas, e numa moldura cultural que só gente culta e informada pode subscrever para desafios afins do enriquecimento pessoal e da comunidade.
Quanto à possibilidade da colaboração na organização do Festival de Sintra, por favor, releia a minha resposta a Carlos Tovar.
Olhe, nem por sombras! Então acha que eu ia invocar um tão sábio dito do meu próprio pai, só para encher a prosa? Aquele "nem à missa" é mesmo para respeitar. Ou, se prefetir, jamais!!! Se tem algum apreço por mim, faça o favor de não me desejar tal envolvimento...
Muito grato,
João Cachado
Concordo inteiramente consigo, o Festival está muito bem concebido. Estive ontem no concerto da Orquestra Gulbenkian , dirigido pela maestrina Joana Carneiro, e volto amanhã para o Concerto Koln :)
Saudações, Moura Aveirense
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