[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 24 de setembro de 2010


Passageira apreensão


Bem, depois de um episódio tão recente como o que, na passada terça feira, sucedeu na Fundação Calouste Gulbenkian, tenho razão bastante para entrar em período de apreensão absoluta. Se tiverem a paciência de lerem as linhas que se seguem, hão-de reparar como tenho motivo para assim poder ter começado este meu apontamento.

Vamos aos factos. No âmbito do excelente Festival Mozart com que está a iniciar a temporada 2010-2011 Gulbenkian de música, anunciava o programa do passado dia 21 a audição das primeira e última sinfonias de WAM, ou seja, da Sinfonia nº.1, em Mi bemol maior, K.16, da Sinfonia nº 41, em Dó maior, K.551, primeira e última sinfonias do compositor, para além do seu Concerto para Piano e Orquestra nº 20 em Ré menor, K.466.

Para a execução das obras, contava-se com a Orquestra da casa que, durante o anunciado concerto e na derradeira das sinfonias teria Florian Krumpöck ao piano e na regência. Interpretada a primeira das citadas peças, sob a direcção do concertino Florian Zwiauer, a alma mater do Festival, seguir-se-ia o concerto de piano.

Seguir-se-ia, escrevi eu e muito bem. Seguir-se-ia, entre outras, se a imprescindível presença do piano, não tivesse sido irremediavelmente comprometida por uma inultrapassável avaria de ordem técnica que afectou a manobra de fazer subir o Steinway, da cave sob o palco, até ao seu lugar definitivo, permitindo a interpretação…

E não havia nada a fazer. Nada. A mesma plataforma elevatória que, há mais de quarenta anos – posso eu testemunhar, quase diariamente – tem funcionado tão impecavelmente, recusava-se a colaborar. Mas o espectáculo, tinha de continuar. Após um penoso intervalo, durante o qual não se percebia se haveria alguma hipótese de resolver o manifesto contratempo, apareceu um funcionário.

Quase na borda do palco, muito timidamente, num quadro do mais profundo amadorismo, com uma vozinha inaudível, sem microfone [enfim, que aquilo, como sabem, é uma casa sem meios...] lá avisou que nada havia a fazer. E, como contra factos não há argumentos, todos tivemos de assumir que, no melhor pano cai a nódoa.

É que, na realidade, a Fundação Gulbenkian é o melhor pano. Melhor pano é inimaginável. E, para nosso grande e absoluto privilégio, apesar de internacional, a Gulbenkian tem sede em Portugal. Trata-se de uma verdadeira instituição, onde, como é sabido, nada é deixado ao acaso, uma verdadeira ilha de excelência num país em que tudo está contaminado por uma patológica cultura do desleixo.

Agora, digam-me lá se não tenho razão para a apreensão que comecei por manifestar… Eu aguento tudo, desde o fisco que me vem aos bolsos buscar o que não é capaz de cobrar aos ricos e poderosos, até à proverbial incompetência da Câmara Municipal de Sintra que nos mina a qualidade de vida. Eu aguento tudo, porque vivo na constante convicção de que, todos os dias, tenho a Gulbenkian como segunda casa, lugar de permanente refúgio. Mas, então, que profundo golpe foi este? Valha-me Deus, até a Gulbenkian agora me falha?

Não, não acredito. E a atestar que assim mesmo não é, logo entrou o jovem Maestro Krumpöck, impondo à orquestra e ao auditório a sua leitura da Júpiter. E que coisa espantosa de se ouvir e entender ele nos deu no fim de tarde. Reger Mozart é aquilo, aquela sábia noção dos tempi, aquela acre e doce relação de momentos de tensão e lassidão em que Amadé foi perfeito e perfeitamente imbatível em toda a História da Música.

Conheço Krumpöck das minhas frequentes estadas em Salzburg e Viena, conheço-lhe o piano, a sagacidade, a mozartiana propensão. Tenho pena, muita pena que, devido ao capricho de uma máquina que não deve ter sido bem oleada, Lisboa não tivesse escutado o nº 20 em Ré menor pelas suas mãos. Paciência. Percebeu, no entanto, que ali, naquele austríaco Florian, há uma sensibilidade mozartiana inequívoca.

A atestar que o acontecido é mesmo para esquecer, já ontem ouvimos a Freiburger Barockorchester, o Coro Gulbenkian e um conjunto de belíssimas vozes solistas, sob a direcção de René Jacobs, interpretando a ópera Cosi fan tutte em versão de concerto. É um daqueles programas, tão sofisticado, que só a Gulbenkian tem meios para se abalançar. E foi uma noite de glória, numa das casas que, a nível mundial, propõe da melhor música.


7 comentários:

Sara disse...

Caro Professor,

Tenho muitas saudades das suas críticas musicais no Jornal de Sintra. Nunca aprendi tanto de história da música como nas suas apreciações aos concertos entre 2002 e 2005 e tudo o que escreveu sobre Salzburg entre 2003 e 2008. Para escrever isto fui ver o que recortei. São centenas de páginas. Foram grandes páginas culturais que o Jornal de Sintra e todos nós perdemos. Sou professora, fui sua aluna e não perco o que continua a escrever no blogue. É sempre o mesmo professor mesmo fora das salas de aula. Estaou a ouvi-lo quando o leio. O professor escreve como fala. É sempre impecável, e quem o conhece sabe como é verdade.
Sobre o que aconteceu na Gulbenkian acho que está a ser muito severo. Mesmo a Gulbenkian tem direito a uma falha em mais de quarenta anos...
Um beijo com muita admiração da
Sara

Anónimo disse...

Na Gulbenkian, Dr Cachado? Pois até aí já chegou a ferrugem demolidora que pôs este país de pantanas? Se calhar o Sócrates mandou para lá algum colega "engenheiro"
de licenciatura dominical como a dele... Se fosse a si não continuava com tanta confiança.

SG

E. B. Alves disse...

Caro João,

Deste um ar da tua graça com este teu artigo sobre o episódio da Gulbenkian, escrevenso umas rapidíssimas notas sobre o concerto do dia 21. Mas foi muito pouco para o que podes e sabes fazer. Relê o que escreveu a tua aluna, hoje nossa colega. Volta a escrever sobre música, assunto em que és autoridade mas silenciosa.
Também gostei do que escreveu há pouco SG. O Sócrates é apenas o paradigma do estado a que chegou a competência profissional em Portugal. É muito rasteiro o nível.
Olha, amigo, valha-nos Deus.
Abraço grande,

E.B. Alves

E.B. Alves disse...

Caro João,
Como não desta essa informação e muitas vezes te referes aos preços dos bilhetes,
apenas a acrescentar que
convém dizer a alguns leitores menos informados que um bilhete de assinatura dos espectáculos do Festival Mozart, no balcão, custava ontem 13,33 (treze Euros e trinta e três cêntimos) para a ópera em versão de concerto, que fizeste alusão no teu texto, do melhor que se pode ouvir em qualquer parte do mundo...
Sem mais comentários,
E.B. Alves

Mª. Carmo Lopes disse...

A Fundação Gulbenkian pode fazer dessas avarias mas não é exemplo de coisa nenhuma e muito menos em comparação com o que se passa pela Europa.

Carmo Lopes

Anónimo disse...

A crítica musical Ana Rocha também contou hoje de manhã na Antena 2 o incidente da Gulbenkian. Parece mesmo um fenómeno e talvez SG tenha razão. Só que tem de ser um «engenheiro» mecânico e não um colega de «civil» do senhor Pinto de Sousa...

Clara Antunes disse...

Nunca ouvi coisa tão estranha. Numa ilha de excelência não há nódoas destas. O que aconteceu evitava-se com a existência de um plano B.

Clara Antunes