[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011



Par(a)lamentar

Vivemos um tempo em que, não raro, assistimos a manifestos de desrespeito pela instituição parlamentar que não deixam de ser muito preocupantes. A propósito, convém não esquecer que o Parlamento é a casa da Democracia. De facto, é mesmo. Casa da Democracia não há outra. Aliás, por razão altamente substantiva, até um qualquer Rui Pedro Soares [lembram-se das palavras do jovem ex-administrador da PT, no dia em que se apresentou à Comissão Parlamentar?] declina este conhecido chavão.

O desrespeito está praticamente institucionalizado, podendo assumir contornos inusitados que, não raro, são protagonizados pelos próprios parlamentares, perante a geral apatia dos cidadãos e, muito naturalmente, pela desatenção dos media, cada vez mais afastados das matérias em que, com toda a pertinência, poderiam aplicar a sua força de detentores do designado quarto poder.

Neste contexto, hoje vos trago uma nota de breve reflexão acerca de um assunto que me permito opinar deveria ter merecido uma atenção diferente daquela que, em meados de Dezembro, lhe votou a comunicação social, quando se soube que o conhecido antropólogo, Miguel Vale de Almeida, deputado do Partido Socialista, resolvera renunciar ao mandato.

Na altura, considerou o parlamentar independente que estava cumprida a tarefa para a qual fora eleito. Ou seja, cessava o seu mandato uma vez que acabara de ser legalmente reconhecido o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a causa em que se tinha empenhado na Assembleia da República, desde que havia sido eleito no ano precedente.

Ora bem, nas sociedades onde vigora o regime da democracia representativa, é suposto que os eleitos se empenhem nas causas constantes dos programas partidários sufragados. Na sequência de eleições legislativas, recebe o deputado um mandato nos termos do qual, durante quatro anos, se compromete fazer o que estiver ao seu alcance para honrar o contrato celebrado com quem nele delegou o poder de conceber e alterar leis que melhorem a qualidade da vida de todos os cidadãos.

Como não podia deixar de ser, ao candidatar Miguel Vale de Almeida nas suas listas, o Partido Socialista apresentou-o ao círculo eleitoral e à República, com o geral estatuto que enquadra todos os potenciais eleitos. Não havia, não podia nem pode haver qualquer diferença de condição ou enquadramento. Então, como se entende que, passados uns meses, o deputado se tivesse arrogado à quebra do compromisso, afirmando o que afirmou, desvinculando-se da palavra que o prendia aos cidadãos que nele confiaram?

Em conclusão, cumpre afirmar o que, implicitamente, se infere das linhas precedentes, ou seja, Miguel Vale de Almeida não foi eleito por um punhado de eleitores para o desempenho da tarefa que, tão apressada como erradamente, afirmou como tendo sido, afinal, a única que o determinara. Grande erro. Grande falta de discernimento. E, convenhamos, igualmente, grande desrespeito pelo Parlamento.

No meio de tudo isto, triste, muito triste que ninguém, com mandato institucional e soberano, se tivesse pronunciado contra tal atitude e, ainda mais estranho, que a mesma não tivesse sido objecto da sanção de pejorativa avaliação que deveria suscitar. Sinais de um tempo em que algo de irregular se passou, sem qualquer aparente reacção de desagravo, no lugar onde, ao mais alto nível, se vive a representatividade dos interesses da República.

Ou, muito prosaicamente, pouco ou nada preocupados com as atitudes de desrespeito de cidadãos eleitos, detentores de cargos decorrentes da vivência democrática, teremos já chegado ao ponto de admitir que a prática da República, em todas as instâncias, se reduza à estéril declinação de chavões que, tão justamente, nos apressamos a condenar nas latitudes ditatoriais? É que, assim sendo, teríamos de concluir estarmos perante o mais monstruoso manifesto de cultura do desleixo em que, a todos os níveis, os portugueses são primorosos artífices.


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De hoje em diante, passarei a publicar os textos que não versem matéria especificamente sintrense no blogue João Cachado - Notas soltas ao passo que as peças relativas ao universo musical serão enquadradas noutro suporte a anunciar posteriormente.




[NB: este texto foi objecto de uma série de comentários inadvertidamente eliminados. O meu pedido de desculpa aos autores]

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