[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Da Música,
usos & abusos

A propósito da proposta de audição de uma peça de Arvo Pärt, que a minha amiga Teresa Botelho de Medeiros colocou no facebook* para partilha com todos os interessados, tive de lhe confessar a minha incapacidade de ouvir a obra à mistura com as imagens do documento audiovisual de que a música era uma das vertentes.


De facto, aquilo que a minha amiga propôs, não foi a partilha de Lamentate, obra musical de Arvo Pärt mas, isso sim, a de uma montagem audiovisual, durante a qual se sucedem fotografias crepusculares e nocturnas da grande metrópole, cuja componente audio é uma peça daquele autor.

Tanto assim é que, na minha modesta opinião, de acordo com a sua específica economia, o documento anunciado, no YouTube, como «Arvo Pärt: Lamentate – Hilliard Ensemble», deveria ter um título totalmente diferente, ou seja, algo como «New York, o som cósmico da metrópole», com a indicação da autoria de Arvo Pärt quanto à música de fundo.

Sujeito-me à avaliação dos demais, nomeadamente à possibilidade de me considerarem muito fundamentalista. Porém, o sofisticadíssimo apuro das propostas musicais, tanto daquele como doutros compositores, é tão absoluto que, na minha cabeça, não admite as conotações que alguém concebeu como imagens obviamente articuláveis.


Com a Música, estar ou não estar…

Aliás, em relação a toda a música substantiva, permito-me repudiar esta e outras atitudes. Por exemplo, algo que, relativamente a este caso, é considerado, digamos, muito mais pacífico, ou seja, a prática de ter de a ouvir a Música como música de fundo, enquanto se lê, como se a música fosse uma arte subsidiária, secundária, apenas muito sugestiva para criar ambiente...

Perante a grande Música, reduzo-me à duplicidade da insignificância e simultânea grandeza da minha condição de destinatário, que o compositor remetente pretendeu atingir. Tento estar com ele tanto quanto me é possível. O autor merece o respeito que me conduz a evitar misturas.

Volto à questão inicial para considerar que, pois claro, coisa bem diferente daquele exemplo de mistura de imagens com música, é aceder à reprodução de um documento audiovisual resultante da gravação da interpretação de determinada peça num auditório.


Naturalmente, não é a mesma coisa do que estar lá, no auditório, partilhando e vivendo o momento em que a música se faz. É que, para todos os efeitos de avaliação, tal documento já está afectado pela perspectiva conceptual do realizador que, de acordo com os objectivos que terá proposto, escolheu registar aquelas e não outras imagens.

É por isso que, apesar de dispor de bons registos, prefiro a frequência dos auditórios, desfazendo-me em despesas, sempre muito contidas, na subscrição das assinaturas que se impuserem. É por isso que, tantas quantas as vezes que a bolsa me permite, lá estou em Salzburg, Bayreuth e noutros santuários, onde tudo é propício ao usufruto da música.


É também por isso – mesmo com o risco de me considerarem bicho do mato – que, igualmente, sempre que possível, evito e me afasto mesmo do convívio social dos malditos intervalos, durante os quais, a menos que esteja devidamente acompanhado, raro é ouvir algo que ultrapasse o nível da baboseira rasteira.

Pela estrada fora…

Percebem, certamente, a ideia que pretendo partilhar convosco. Contudo, para que não fique uma dúvida, ainda darei mais um exemplo. Eu só posso e quero ouvir, em perfeito exclusivo – como, efectivamente, merecem – o Miserere de Pärt, o Ave Verum Corpus de Mozart, o Parsifal de Wagner, o Falstaf de Verdi, ou a Missa em Si de Bach, tal como não posso deixar de gozar, em perfeito exclusivo, a leitura das páginas de Guerra e Paz de Tolstoi, ou beneficiar do David, na Accademia de Florença ou do Genesis do tecto da Capela Sistina, em Roma, ambas de MichelAngelo.

Tal não significa que, conduzindo o automóvel, não ouça os CD que me apetece ou a música, nomeadamente erudita, transmitida pelos postos de rádio nacionais e estrangeiros. Quando o faço, e faço-o sempre que conduzo, assumo perfeitamente tratar-se de uma audição outra.


Embora, na sua essência, a Música continue a mesma, sempre e, portanto, também na altura em que conduzo, apesar de aquela Música me gratificar, a esmagadora maioria das minhas capacidades essenciais está projectada na condução e, apenas em percentagem residual, muito secundariamente, na Arte que me chega aos ouvidos.


Pela estrada fora, o que eu faço é menorizar, apoucar a peça de Arte que ali se faz ouvir, passando-lhe um estatuto que não merece. É tão simples quanto isto e as coisas devem ser chamadas pelos seus nomes…


*Portanto, de acordo com os elementos que forneço, o melhor será consultarem o documento no Youtube.

4 comentários:

Miguel Seabra disse...

Amigo João,
Vi a coisa no Youtube. Tens toda a razão. O que não falta por aí são confusões como a deste exemplo. O teu texto é muito bom. Já estou farto de te dizer mas tu não dás o passo: publica estas coisas. Saudoso abraço, Miguel Seabra

Carlos Sousa disse...

Amigo,
Gostei do seu texto. Sempre muito oportuno e a acertar no alvo.
No dia Mundial da Música o que nos aconselha o especialista?
Abraço, Carlos Sousa

Anónimo disse...

Pois é mas a maioria das pessoas trata a música como uma arte menor.É só para servir de fundo para outras actividades. Temos a cabeça tão cheia de outras coisas e preocupações que não dá para encarar uma obra musical como uma estátua ou como um poema porque a música sugere muitas relações.

Pedro Lemos disse...

Caro Professor,
Sim senhor: mais respeito pela arte de Orfeu. Afinal toda a gente usa e abusa. Tenho a impressão que só umas aves raras como o João Cachado é que chamam a atenção para o óbvio. Parabéns e obrigado.
Pedro Lemos