[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O meu francês
e as outras línguas


Há alguns minutos, numa reportagem televisiva captada em Vilar de Perdizes, por ocasião da Feira de Medicinas Alternativas, ouvi o testemunho de um médico francês que ali se tinha deslocado, integrado num grupo de mais cinco colegas seus compatriotas. Para a economia deste texto, nada interessa o que disse o homem mas, isso sim, o facto de se ter expressado não no seu idioma natal mas em Inglês.


É provável que o fizesse porque, naturalmente, terá sido interpelado em Inglês. Na realidade, hoje em dia, é muito raro que jovens trabalhadores da comunicação social * saibam qualquer coisinha de francês. Apenas constato o facto. Como filólogo, professor e técnico de Educação, tenho obrigação de saber que motivos estão a montante deste fenómeno, tanto a nível nacional como mundial, mas isso é matéria para outro fórum.

Quanto à língua francesa, o que não posso deixar de lembrar é a diferença em relação ao quadro em que nasci e cresci. Em casa dos meus pais, por exemplo, os grandes clássicos da cultura europeia, bem como uma boa parte da biblioteca eram, invariavelmente, em francês. E, se assim acontecia, era porque o francês, para todos os efeitos, funcionava como segunda língua.

E, de tal modo assim foi que, a partir dos treze, quatorze anos, eu li em francês, Guerra e Paz, A la Recherche du Temps Perdu, Don Quichote, Werther, Montanha Mágica, entre muitas outras obras, sem qualquer problema. Tolstoi, Proust, Cervantes, Goethe, Mann, são autores que, desde a adolescência, muito naturalmente, me habituei a amar, em francês. Contudo, de modo algum, o meu caso foi especial.

No meu tempo, aos dez anos, à entrada no Liceu, os miúdos das famílias burguesas falavam fluentemente o francês. Em muitas casas havia a mademoiselle que iniciava os meninos na língua francesa. Na nossa, muito antes de aprendermos a ler e a escrever em português, passámos a ter um professor de francês, coisa nada habitual.

Tão bizarra circunstância, aliava o facto de o senhor ser mariquinhas. O Sérgio Monteiro – licenciado em Românicas, professor de instrução primária por opção, sujeito muito conhecido em Belém, geralmente considerado um bom pedagogo – era amigo pessoal e de longa data da casa dos meus avós e daí que se tivesse tornado na nossa mademoiselle.

A propósito, como esquecer que uma das minhas irmãs, muito pequena, nos seus quatro anos, tivesse tentado gozar com os modos efeminados do Sérgio? E como o meu pai lhe chamou a atenção dizendo que o Sérgio era um amigo da família, mariquinhas, sim senhor, o que não significava que admitisse que a menina fizesse pouco dele. E falou tão a sério que a mana nunca mais repetiu a gracinha de imitar o gesto amaricado com que, por exemplo, o Sérgio acompanhava o la chambre a coucher

Para os meus pais, falar e escrever várias línguas, o melhor possível, sempre em articulação com a cultura dos respectivos países, era um objectivo maior da educação dos filhos. Além do ensino, mais ou menos formal, em família e na escola, também beneficiei da disponibilidade de outras famílias como, por exemplo, acontecia em tempo de férias, em São Martinho do Porto, no convívio com os Sommer de Andrade que tinham fraulein permanente.


Não é de admirar que, por volta dos quinze anos, quase naturalmente, também por via da minha opção pela Filologia Germânica, não só tivesse progredido no domínio do inglês e do alemão, mas também do latim, do castelhano e do italiano. De qualquer modo, o francês já se tinha insinuado e instalado como matriz, grelha profunda que determinava e permitia o acesso a outros saberes.

Tanto assim aconteceu que os próprios estudos avançados de Inglês, em especial quanto ao Inglês na América, os fiz com base em material didáctico francês, como se fosse um jovem estudante francês de 1ère ou classes terminales, nomeadamente, recorrendo ao La Vie en Amérique, dos Prof. P. M. Richard e Wendy Hall, dos Classiques Hachette.


E, já na Faculdade de Letras, no terceiro ano do curso, em Literatura Alemã II, todo o meu Chamisso de Peter Schlemihls Wundersame Geschichte, o Lessing, de Nathan Der Weise, ou Die Erziehung des Menschengeschlechts, o Hebbel de Gyges und sein Ring, o Novalis de Kleine Schriften, ou o Fichte de todos os discursos à nação alemã e uma boa quantidade de outros autores e obras se me tornaram bem mais acessíveis, através das Éditions Montaigne da Aubier, na Collection Bilingue (francês/alemão), que sempre ajudavam quando qualquer dificuldade maior se interpunha no original alemão.

Tendo em consideração toda esta experiência de contacto tão intenso com um idioma ao qual estou tão indissociavelmente ligado e tanto devo, ao ponto de se ter confundido com a minha própria língua-mãe, não será difícil de entender como é algo estranho ouvir um cidadão, cuja língua materna ainda dominava o mundo, há cerca de meio século, obrigado a estas constantes cenas de expressão noutra língua que, entretanto, se tornou hegemónica. Sic transit gloria mundi

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*Poderia ter usado o termo jornalista? Pois podia. Mas, que querem os leitores, não é que, cada vez mais, tenho maior dificuldade em fazê-lo quando o quadro de referência é, não o da nobre actividade jornalística mas este em que não passam de jovens trabalhadores da comunicação social?



2 comentários:

António Lucas disse...

Amigo Dr. Cachado,
Os tempos são outros mas dá que pensar. É difícil entender como uma língua tão importante como o francês está hoje tão limitada. Sou da sua geração e compreendo muito bem as suas palavras. Pode-se pensar que pode acontecer o mesmo ao inglês e que o Homem deixe de precisar de uma língua para facilitar a comunicação entre todos os povos. A tecnologia pode ultrapassar-nos a todos porque afinal a tradução é uma coisa muito tosca. Qualquer dia, qualquer pessoa fala a sua língua e os estrangeiros entendem imediatamente com um chip qualquer no ouvido. Abraço, António Lucas

Anónimo disse...

esta conversa é o que se chama elitista até dizer chega. Se fala francês também toca piano?