Seteais.
Ah, o tanque, Senhor…
A inqualificável destruição do tanque de Seteais, constituiu mais um sinal de um tempo de perfeito destempero, nos termos do qual o concessionário de um bem patrimonial classificado se permitiu perpetrar um autêntico crime com o beneplácito do Igespar, a entidade oficial do Ministério da Cultura à qual, por definição, está cometida a defesa da integridade física e imaterial das peças constantes do riquíssimo acervo nacional.
Pesei cada uma das palavras que acabei de escrever. Crime, disse eu. Não, não se tratou de uma intervenção controversa, daquelas que, posteriormente geram alguma polémica que se desfaz na espuma dos dias. Não, transformar aquela peça – que, fazendo parte de um característico dispositivo de lazer, articulava com o próprio palácio, a escassas dezenas de metros de distância – numa prosaica casa de máquinas, foi coisa mesmo criminosa.
Mais, ter obtido autorização bastante para o efeito, com base na decisão de um organismo da Administração Central, que a justificava com o argumento de que a parte superior da referida construção seria transformada num espelho de água ilusionista, é algo de inimaginável mas, infelizmente bem real.
Os leitores que têm acompanhado este caso, lembrar-se-ão de que, em Novembro de 2008, o Arquitecto Assessor Principal Luís de Pinho Lopes, de facto, teve o desplante de subscrever e de me dirigir uma mensagem inequívoca que bem atesta a falta de gabarito de quem deveria ter posição substancial e substantivamente diferente da do destempero que passo a transcrever:
"Exmo Senhor,
Na sequência do v/ e-mail de 5 do corrente, venho esclarecer que a intervenção em curso no Hotel de Seteais obrigou à criação de um espaço coberto para abrigar as bombas de água para rega e para as da própria rede contra incêndios.
Com os melhores cumprimentos.
Luís de Pinho Lopes
Arquitecto Assessor Principal
Instituto Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, I.P.
Palácio Nacional da Ajuda”
Aqui, 'preto no branco', bem espelhada a dimensão de a quanto pode chegar a pacóvia opinião instalada num gabinete oficial. [para facilidade de acesso, no fim deste post, segue a transcrição da minha resposta a qual também é constante do arquivo deste blogue].* Enfim, apesar da minha reacção – de autêntico David contra Golias, que me levou a outras diligências, inclusive, a reunião pública da Câmara Municipal de Sintra – a coisa continuou e fez-se, tal qual o Arq. Pinho Lopes dera a entender.
Posteriormente, desde então e até ao presente, adjacente à casa das máquinas, tem funcionado um género de zona de arrumos, viveiro, lixeira, nitreira, em que o desrespeito pelo espírito do lugar, pelas memórias do lugar, não tem adjectivos que o qualifiquem. É a trampa institucionalizada, ali na curva da estrada, a céu aberto, num descaramento que confunde quem por ali passa. Como é possível? Por favor, passem por lá, inteirem-se e reajam.
A Parques de Sintra Monte da Lua é a entidade que, em nosso nome, poderá intervir dando satisfação a tanta indignação de cidadãos cuja reacção, lamentável mas certamente, não se traduziu em públicas tomadas de posição. Bom seria que, em nome da História e da dignidade, pudesse a PSML desencadear medidas que levassem à reposição de estado inicial da peça que foi objecto de atentado tão ignóbil e que poderia constituir exemplo paradigmático do que, apesar da crise e da austeridade vigente, é possível fazer para não comprometer a integridade do património.
Pessoalmente, só tenho os melhores motivos para confiar no resultado da intervenção do Presidente do Conselho de Administração da PSML, Prof. António Ressano Garcia Lamas, que conhece o assunto em todas as suas vertentes, que comigo se escandalizou perante o despautério. Aguardo. Aguardemos com a esperança que ainda não nos abandonou, sabendo como podem ser longos processos como este.
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*Eis a transcrição da minha resposta:
“Exmo Senhor
Arquitecto Luís Pinho Lopes
Arquitecto Assessor Principal do IGESPAR
Senhor Arquitecto,
Acuso a recepção do texto que V. Exa. acaba de enviar, através de correio electrónico, acerca da construção de uma casa de máquinas em Seteais, construção essa que, segundo razão apresentada por V. Exa., decorreu da necessidade de, no contexto da intervenção em curso no Hotel de Seteais, criar "(...) um espaço coberto para abrigar as bombas de água para rega e para as da própria rede contra incêndios (...)".
Perante a necessidade em apreço e "(...) ciente do impacte negativo que necessariamente adviria de uma nova construção nos jardins (...)", o IGESPAR não hesitou em despachar favoravelmente a proposta de destruição de um tanque, instalado a poente da propriedade, aproveitando a sua estrutura para concretização do propósito supra enunciado.
Acabo de ler. Incrédulo e perplexo, leio e releio o texto. V. Exa. deixou-me completamente pasmado. Talvez, dentro de alguns dias, consiga eu classificar a atitude do IGESPAR. Todavia, neste momento, sinto-me incapaz de afirmar seja o que for, para além de adjectivar como incrível a ligeireza com que, de uma penada, sem que se lhe tenha colocado qualquer questão, a mínima dúvida, no âmbito de matérias afins da conservação, preservação e restauro, uma entidade com o perfil daquela onde V. Exa. exerce actividade, terá contribuído para a destruição do equipamento em causa.
Porventura, poder-se-ia ter pensado em, enterrar uma insignificante casa de máquinas, em qualquer canto da propriedade, solução que jamais contribuiria para a criação de qualquer impacto negativo, uma vez que, literalmente, remetida para o subsolo, não se veria. Afinal, o tanque estava mais à mão e quem se mostrava aparentemente preocupado com a criação de impactos negativos, num contexto que os não merece, acabou por destruir um bem patrimonial articulado com um edifício classificado. Para o efeito, travestiu-o, através de uma solução que, em termos estéticos, não só ofende qualquer noção de bom gosto, como também se posiciona contra o espírito do lugar.
Se, na Administração Pública, há serviços onde, quotidianamente, se lida com conceitos tão pertinentes, como o do espírito do lugar - tantas e tantas vezes invocado, sempre que se analisa os argumentos pró e contra de uma projectada intervenção, no contexto da fase de diagnóstico de situação - naturalmente, o IGESPAR evidenciar-se-á pela frequência.
Porque não se me coloca a dúvida de que o conhecimento de tão básico e comum conceito, faça parte do conjunto de instrumentos de análise que pressupõe actividade prática e quotidiana dos técnicos do IGESPAR, acreditará V. Exa. que é com a maior dificuldade, com inequívoco pudor, que ouso pôr em causa o discernimento que, a montante, terá justificado e prevalecido na decisão de destruir o tanque.
É que, Senhor Arquitecto, permita-me lembrar, o tanque, sumarissimamente referido por V. Exa. como vazio e abandonado, na realidade, fazia parte do tal espírito do lugar. Instalado a poente da propriedade, parte integrante do património da propriedade, também fazia parte de um património virtual, de memórias de milhares de sintrenses e forasteiros que, nas suas caminhadas à volta de Seteais, a caminho da Penha Verde ou de Monserrate, sempre ali se detiveram, numa especial relação com o local.
Como bem sabem os técnicos do IGESPAR que, tão inadvertida quanto inopinadamente, terão avalizado a decisão de o destruir, aquele não era apenas um ingénuo tanque, num particularmente conhecido recanto da propriedade de Seteais. Tanto não era que bem o demonstra o equipamento de lazer, ainda hoje bem visível, à cota alta, apenas uns dois metros acima. Refiro-me, como V. Exa. e os técnicos do IGESPAR bem conhecem, ao balcão dotado de uma série de bancos, do tipo conversadeira, aliás, muito bem integrados e enquadrados por uma vegetação em íntima afinidade.
O tanque, Senhor Arquitecto, era parte integrante de um bem patente, inequívoco e evidente dispositivo de lazer que articulava com a restante propriedade. Verdade é que estava vazio. Não menos verdade é que estava abandonado, muito naturalmente, devido à incúria do concessionário do hotel, cujos objectivos não passavam pela preservação de tal equipamento.
Contudo, Senhor Arquitecto, tal situação de abandono que, em normais circunstâncias, animaria o proprietário - o Estado Português, agora localmente representado pela empresa de capitais públicos Parques de Sintra Monte da Lua - à necessidade da recuperação da peça, lamentavelmente, acabou por provocar uma atitude de inqualificável desprezo por parte do IGESPAR, afinal, a última entidade que se consideraria possível a patrocinar um tal desconchavo.
Como V. Exa. sabe, Senhor Arquitecto, para que seja considerado objecto a preservar, independentemente da sua eventual classificação, um bem patrimonial pode ser coisa bem simples, ingénua. De qualquer modo, sempre estará afectado por particular sofisticação e sempre, sempre relacionado com a história, com o espírito do lugar e em íntima articulação com as pessoas. Com todos estes items em presença, o simples facto de estar abandonado e vazio não podia ser lido, entendido, como peça a abater.
De facto foi abatido, irremediavelmente destruído o tanque. E tudo tem vindo a acontecer, ao longo de meses, apesar de ter suscitado um movimento de opinião, de o assunto ter sido levado a reunião pública do executivo autárquico e a sessão da Assembleia Municipal de Sintra, embora tenha sido enviada correspondência ao IGESPAR manifestando o desagrado da população e de ter sido presente queixa à UNESCO, junto da delegação portuguesa e em Paris, de terem saído artigos na imprensa e publicadas inúmeras mensagens na blogosfera.
Consumou-se a destruição. E, por fim, Senhor Arquitecto, como se não nos bastasse a ofensa de que fomos objecto - de ter sido subtraído à memória colectiva um bem que tanto significado tinha para a comunidade, substituindo-o por uma prosaica casa de máquinas - ainda se permite V. Exa., em nome do IGESPAR, vir desassossegar-nos com a confirmação daquilo que já sabíamos há muito, ou seja, que "(...) A construção em curso será coberta por uma laje impermeabilizada, a qual servirá de fundo a um espelho de água, criando no final da obra a ilusão de um tanque cheio."
Efectivamente, Senhor Arquitecto, para rematar tanta controvérsia, o IGESPAR não podia ter dado cobertura a solução tão polémica como a cosmética de um ilusionismo de tão flagrante mau gosto, que resvala nos limites do mais pacóvio novo riquismo, algo que, tão sincera e desassombradamente como todas as precedentes palavras, lhe confirmo que não esperava.
Há um facto consumado de destruição mas o assunto não está encerrado. E, a propósito, Senhor Arquitecto, encerrado, isso sim, e com o aval do IGESPAR, está o terreiro de Seteais, medida altamente discutível que não esgota o rol de infelizes decisões na zona. Há dias, convém lembrar, outra ofensa, desta feita ao Poder Local, na pessoa do Presidente da Junta de freguesia de São Martinho, a quem o concessionário do hotel se permitiu recusar a entrada no recinto, depois de o autarca se ter identificado e anunciado que ia em missão de esclarecimento.
Mesmo defronte, na Quinta do Vale dos Anjos, está em curso a designada reconstrução de uma casa de habitação, licenciada pela Câmara Municipal de Sintra, cujo processo já está nas mãos do douto Tribunal Administrativo local.
A história de Seteais, em particular a luta pela manutenção de um acesso público ao local, ao longo de mais de duzentos anos, salpicados de curiosas peripécias, faz parte da História e prossegue, nos nossos dias, com o acrescento destes lamentáveis episódios. No entanto, apesar dos erros de percurso, as instituições continuam a funcionar e, como outrora, com os cidadãos atentos ao desenrolar dos factos, honrando a dignidade de uma nobre herança, plasmada nas posições de tantos sintrenses, que José Alfredo da Costa Azevedo tão bem relatou.
Finalmente, cumpre destacar que o IGESPAR se tem dado ao cuidado de responder às tomadas de posição que lhe têm dirigido alguns cidadãos, entre os quais me incluo. Pela raridade da atitude, não deixo de a assinalar, ao subscrever-me,
Com os melhores cumprimentos,
João Cachado”
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