[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 1 de junho de 2012



Obviamente, grego*



Neste sudoeste atlântico à esquina do Mediterrâneo, sou directo herdeiro de um legado que, há milhares de anos, está colado à grega radicalidade de conceitos que se verteram em palavras inculcadas na nossa matriz comum de homens, de cidadãos nacionais e europeus. Senhor deste património, vivo dias de perplexidade, perante a desfaçatez com que são postos em causa os elos perenes que nos prendem à Grécia. E, desolado, passeio-me entre os estilhaços da nossa vinculação ao ideal da Europa unida.

Por enquanto, o que prevalece é a palavra de desqualificada dos governantes afirmando que «nós» não somos gregos. Vítima deste tremendo disparate, reconhecendo   quem nos  pretende roubar a evidente  pertença helénica, percebo-lhes  a manobra do  tirar a água do capote na tentativa de salvar a pele de um contágio de aparente praga alheia que, afinal, é bem nossa, qual endemia  que alastra e afecta tantos milhões de europeus.

Tão grego como português e espanhol  ou também francês, inglês e alemão, na profunda e sincera partilha do estupendo programa proposto  por  Maurice Schumann, Konrad Adenauer, Paul Henry Spaak, os grandes  construtores da nova Europa – que, desde muito miúdo, me habituei a admirar pela mão dos meus pais e avós – eis o meu privilégio de europeu, a braços com uma inquietação impossível de calar.

 Grego, sim, grego. Provavelmente, nunca como hoje, tenho mais que suficientes razões para me confessar, confirmar e sentir tão helénico como qualquer cidadão de Atenas ou de Tessalónica. Estou e ando por lá, plasmado naquela raiva que alastra pelas ruas para desaguar em frente ao Parlamento. Eu também atiro pedras, recuso esta fornada de humilhações impostas por quem pretende sufocar tanta indignação com as receitas da incultura e da ignorância mais gritante.

 De qualquer modo, jamais trocarei a inteireza da revolta do ‘politikós’, meu irmão helénico, que sofre o que não deve, pela ordinária moleza de uma conversa de medíocres ministros de finanças, em que a lusa e gasparina submissão se apouca perante a sobranceria tolerante de um Wolfgang Schäuble, a caminho do inevitável e já visível descalabro, sem conseguir, porém,  dobrar nem descaracterizar a dignidade de um povo.

Ao discurso da indignidade, à verborreia da ignorância, à falta de lucidez, como contrapor a honrada luta pelo ideal europeu e o caminho  em direcção à União, à Democracia, sob os auspícios da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, a magnífica tríade cultural que nos define e que tanto deve à herança helénica? Este o desafio maior ao qual cumpre responder nos atribulados tempos que nos coube partilhar.

* texto publicado na edição de hoje do Jornal de Sintra

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