[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 19 de outubro de 2012



A estratégia da rua

Como não podia deixar de suceder, já que estive totalmente envolvido no processo, sempre me ocorre lembrar o episódio da iminente destruição da Volta do Duche quando vem a propósito escrever ou falar acerca de manifestações de rua.
Quando o movimento cívico se começou a organizar, havia uma série de pessoas pensando na organização de uma manifestação de rua que percorresse aquela artéria, entre o Palácio da Vila e os Paços do Concelho, em que os cidadãos aderentes transportariam determinados cartazes com slôganes adequados à circunstância, dizendo as palavras de ordem combinadas.
Pois, hoje em dia, passados doze anos, permitam que confirme o que, acerca da manifestação de rua, dizia eu aos companheiros que se iam juntando à causa da defesa do lugar que era e, em consequência da nossa luta, continua sendo património emblemático de Sintra. Pois, nem mais nem menos, que só devíamos ir para a rua se tal atitude fosse apenas um dos elementos da estratégia da luta que estávamos equacionando.

E assim foi. Na realidade, até concretizámos a manifestação. Porém, em relação a tudo o resto que também realizámos, a manifestação de rua foi coisa de importância relativa. Tínhamos preparado dossiês de documentação com exemplares disponíveis no terreiro em frente ao Palácio da Vila, com fotocópias muito aumentadas do projecto, havia abaixo-assinados a circular, alguns especificamente dirigidos a académicos, intelectuais de todas as áreas, cartas remetidas a uma série de entidades entre as quais o Director-Geral da Unesco, etc.
Por outro lado, a estratégia junto da comunicação social surtiu totalmente o efeito desejado,  conseguindo a cobertura de todos os jornais diários nacionais e de todas as estações de televisão, tendo entrado em directo nalguns programas, inclusive com entrevistas/debate entre autarcas defensores do projecto e nós, os opositores. Houve distribuição de milhares de exemplares do manifesto do movimento nas ruas mais movimentadas de todas as sedes das várias freguesias, afixação de cartazes em lugares estratégicos.
Algo de muito importante foi o apontar soluções alternativas ao projecto de ali construir um parque de estacionamento subterrâneo, propondo medidas concretas. Pode afirmar-se que, dificilmente, alguma coisa terá sido deixada ao acaso. E, de tal modo assim foi, ou seja, as coisas correram tão de feição, que resultaram no abandono do projecto que já estava protocolado, um inequívoco sucesso que levou o semanário ‘Expresso’ a considerar o caso da defesa do património da Volta do Duche como exemplar.
Em conclusão muito simples, bem poderia considerar-se que tivéssemos nós programado apenas a manifestação de rua e nada teríamos conseguido. Foi perante o peso de toda um pacote de iniciativas bem equacionadas que vergou toda uma máquina autárquica, incapaz de contrapor atitudes mais originais e mais convincentes que anulassem a capacidade de mobilização dos munícipes altamente motivados perante um processo muito dinâmico.
Será que poderíamos extrapolar estas conclusões para outros quadros de movimentação cívica como, por exemplo, o que tem levado para a rua os cidadãos escandalizados com as medidas que o Governo tem vindo a anunciar, em especial, no campo fiscal? Duvido na medida em que se trata de um processo muito diferente e numa escala incomparável.  Mas tem sido à rua, no exercício de um direito especialmente protegido no artº 45º da Constituição da República Portuguesa, sistematicamente à rua, que os cidadãos têm descido para a manifestação do seu sentir.
Porém, uma coisa é certa: ir para a rua não resolve absolutamente nada. Nada! Ir para a rua apenas sinaliza o desconforto das massas populares em protesto, avisa os decisores políticos que, neste caso, os cidadãos chegaram ao limite das suas possibilidades e que, em muitas circunstâncias, já foi ultrapassado o limiar da dignidade. Isto, que não é pouco, não passa de um aviso. Porque a decisão, mesmo que passe por uma eventual inflexão da estratégia fiscal a inscrever no Orçamento de Estado, a decisão, repito, cabe ao Governo, nos termos do que acontece nos Estados Democráticos de Direito.

Aliás, foi de acordo com este princípio que, em Fátima, há uns dias, se manifestava o Cardeal Patriarca de Lisboa, falando à imprensa, na sua condição de Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. De facto, a rua nada resolve, apenas envia sinais a quem deve estar atento, portanto, a quem, em última instância, cabe decidir. Não deixando de constituir um sério alerta cívico, a rua é uma forma rudimentar do exercício da cidadania. E, em sentido contrário, quem pensar que a rua é o máximo ou que esgota a intervenção cívica está redondamente enganado.
Volto ao início. Volto ao processo da luta pela defesa do património da Volta do Duche, de reduzidíssima dimensão, para confirmar como o movimento cívico de Sintra soube equacionar a medida em que a rua podia servir o seu objectivo último. Oxalá, sejam quais forem as circunstâncias, seja qual for a sua escala, que os movimentos cívicos de cidadãos com uma estratégia de recurso à rua para manifesto de um protesto, tenham sempre a precisa noção do valor da rua para a prossecução dos seus objectivos.


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