A estratégia da rua
Como não podia deixar de suceder, já que
estive totalmente envolvido no processo, sempre me ocorre lembrar o episódio da
iminente destruição da Volta do Duche quando vem a propósito escrever ou falar
acerca de manifestações de rua.
Quando o movimento cívico se começou a
organizar, havia uma série de pessoas pensando na organização de uma
manifestação de rua que percorresse aquela artéria, entre o Palácio da Vila e
os Paços do Concelho, em que os cidadãos aderentes transportariam determinados
cartazes com slôganes adequados à circunstância, dizendo as palavras de ordem
combinadas.
Pois, hoje em dia, passados doze anos,
permitam que confirme o que, acerca da manifestação de rua, dizia eu aos
companheiros que se iam juntando à causa da defesa do lugar que era e, em
consequência da nossa luta, continua sendo património emblemático de Sintra.
Pois, nem mais nem menos, que só devíamos ir para a rua se tal atitude fosse apenas
um dos elementos da estratégia da luta que estávamos equacionando.
E assim foi. Na realidade, até concretizámos a
manifestação. Porém, em relação a tudo o resto que também realizámos, a
manifestação de rua foi coisa de importância relativa. Tínhamos preparado
dossiês de documentação com exemplares disponíveis no terreiro em frente ao
Palácio da Vila, com fotocópias muito aumentadas do projecto, havia
abaixo-assinados a circular, alguns especificamente dirigidos a académicos,
intelectuais de todas as áreas, cartas remetidas a uma série de entidades entre
as quais o Director-Geral da Unesco, etc.
Por outro lado, a estratégia junto da
comunicação social surtiu totalmente o efeito desejado, conseguindo a cobertura de todos os jornais
diários nacionais e de todas as estações de televisão, tendo entrado em directo
nalguns programas, inclusive com entrevistas/debate entre autarcas defensores
do projecto e nós, os opositores. Houve distribuição de milhares de exemplares do
manifesto do movimento nas ruas mais movimentadas de todas as sedes das várias
freguesias, afixação de cartazes em lugares estratégicos.
Algo de muito importante foi o apontar
soluções alternativas ao projecto de ali construir um parque de estacionamento
subterrâneo, propondo medidas concretas. Pode afirmar-se que, dificilmente,
alguma coisa terá sido deixada ao acaso. E, de tal modo assim foi, ou seja, as
coisas correram tão de feição, que resultaram no abandono do projecto que já
estava protocolado, um inequívoco sucesso que levou o semanário ‘Expresso’ a
considerar o caso da defesa do património da Volta do Duche como exemplar.
Em conclusão muito simples, bem poderia
considerar-se que tivéssemos nós programado apenas a manifestação de rua e nada
teríamos conseguido. Foi perante o peso de toda um pacote de iniciativas bem
equacionadas que vergou toda uma máquina autárquica, incapaz de contrapor
atitudes mais originais e mais convincentes que anulassem a capacidade de
mobilização dos munícipes altamente motivados perante um processo muito
dinâmico.
Será que poderíamos extrapolar estas
conclusões para outros quadros de movimentação cívica como, por exemplo, o que
tem levado para a rua os cidadãos escandalizados com as medidas que o Governo
tem vindo a anunciar, em especial, no campo fiscal? Duvido na medida em que se
trata de um processo muito diferente e numa escala incomparável. Mas tem sido à rua, no exercício de um direito
especialmente protegido no artº 45º da Constituição da República Portuguesa,
sistematicamente à rua, que os cidadãos têm descido para a manifestação do seu
sentir.
Porém, uma coisa é certa: ir para a rua não
resolve absolutamente nada. Nada! Ir para a rua apenas sinaliza o desconforto
das massas populares em protesto, avisa os decisores políticos que, neste caso,
os cidadãos chegaram ao limite das suas possibilidades e que, em muitas
circunstâncias, já foi ultrapassado o limiar da dignidade. Isto, que não é
pouco, não passa de um aviso. Porque a decisão, mesmo que passe por uma
eventual inflexão da estratégia fiscal a inscrever no Orçamento de Estado, a
decisão, repito, cabe ao Governo, nos termos do que acontece nos Estados
Democráticos de Direito.
Aliás, foi de acordo com este princípio que,
em Fátima, há uns dias, se manifestava o Cardeal Patriarca de Lisboa, falando à
imprensa, na sua condição de Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. De
facto, a rua nada resolve, apenas envia sinais a quem deve estar atento,
portanto, a quem, em última instância, cabe decidir. Não deixando de constituir
um sério alerta cívico, a rua é uma forma rudimentar do exercício da cidadania.
E, em sentido contrário, quem pensar que a rua é o máximo ou que esgota a
intervenção cívica está redondamente enganado.
Volto ao início. Volto ao processo da luta
pela defesa do património da Volta do Duche, de reduzidíssima dimensão, para
confirmar como o movimento cívico de Sintra soube equacionar a medida em que a
rua podia servir o seu objectivo último. Oxalá, sejam quais forem as
circunstâncias, seja qual for a sua escala, que os movimentos cívicos de
cidadãos com uma estratégia de recurso à rua para manifesto de um protesto, tenham
sempre a precisa noção do valor da rua para a prossecução dos seus objectivos.
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