[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sábado, 1 de junho de 2013



Sokolov,
Fecho de temporada Gulbenkian 12/13



Ontem, penúltimo dia de eventos musicais antes de entrar em obras – amanhã ainda haverá nova récita do Otello de Verdi que, aproveito a oportunidade para recomendar, simplesmente pela prestação de Dina Kuznetsova, belíssimo soprano que protagoniza a Desdemona - o Grande Auditório da Gulbenkian acolheu o recital de Grigory Sokolov que, tendo estado agendado para 11 de Novembro de 2012, foi adiado por doença do pianista.

Com u
m programa distribuído, na primeira parte, por duas peças de Schubert, Impromptus, D. 899 e Drei Klavierstücke, D. 946 e, na segunda, pela Sonata nº 29, em Si bemol Maior, op. 106, Grosse Sonate für das Hammerklavier, tratava-se de uma proposta de tal modo sublimemente tentadora que, na verdade, qualquer melómano jamais perderia, a não ser por motivo de força maior.

Antes de partilhar uma ou outra impressão sobre a execução das peças, gostaria de assinalar um facto que, certamente, não tem passado desapercebido àqueles que, mais de perto, acompanham as lides dos grandes pianistas internacionais. Não raro, quando é adiado um concerto – até mais um recital, prova de fogo tão desafiante – o público que, por vezes espera tal oportunidade com expectativa inusitada, fica num estado de frustração absolutamente compreensível.

Em geral, apesar da perda de um momento de Arte muito aguardado, o público entende que foi no seu próprio interesse que o artista cancelou. Mas, ontem mesmo, conversando com algumas pessoas, reparei como, em relação a Sokolov, as opiniões se dividiam. É que, na realidade, nos últimos anos, estes episódios de cancelamento e adiamento têm-se repetido. E quando disse àqueles companheiros que o recital de ontem, que já era consequência de um adiamento, esteve mesmo para ser definitivamente desconsiderado, por motivos de doença, então ainda ficaram mais perplexos.

Por muitos críticos considerado o maior e mais dotado de todos os grandes pianistas da actualidade, com sessenta e três anos, Sokolov não é um velho. Extraordinário artista, tem uma saúde com alguns problemas e, como tantos reputados intérpretes do universo das música erudita, está obrigado a um elevado número de compromissos negociados com anos de antecedência. Não surpreende, portanto, que haja falhas pois ninguém tem o futuro na mão.

Que, com todos estes condicionamentos, apesar de alguma fragilidade, Sokolov consiga propiciar uma leitura da op. 106 como ontem aconteceu, eis o milagre da Música ao vivo, Arte feita no tempo, no momento irrepetível. Claro que um recital não é uma gravação de estúdio. Acontecem deslizes por cima dos quais o melómano passa, porque o que está em jogo, entre aquele homem e o piano, nada fica comprometido por uma nota eventualmente pisada.

Tal como ontem aconteceu. A proposta do Sokolov de hoje para a leitura da op. 106, é tão diferente da do Sokolov que interpreta esta obra em 1975! Meu Deus, que subtis matizes… Os tempos, mais «contidos» actualmente observados, as pausas, um diluir-se físico na expressão dos acordes, as suspensões. Que epifania, meus amigos, aquele último andamento da Sonata, em especial, a derradeira Fuga a tre você, con alcune licenze, em que as três vozes jogam mesmo, em contraponto e com recurso ao trilo, num mundo harmónico que o Steinway, naquelas mãos prodigiosas, ia soltando para um espaço ávido e rendido ao portento.

Desde as peças iniciais de Schubert, sabiamente concebido, o programa do recital foi percorrendo um caminho cada vez mais afim de uma interioridade, onde nada mais é possível cavar para alcançar um êxtase, muito próximo da desconstrução e da fragmentação que um Beethoven, extremamente racional, procurou nas obras deste período (1817/18) e na fase final de produção. Que fabuloso momento musical este do encerramento da temporada 2012/13!

Naturalmente, vou deixar-vos com a Sonata no. 29, op. 106 de Beethoven. Primeiramente, assinalada com «*», a execução desta peça por Sokolov, em 1975 e, depois, os seus quatro andamentos, separados, numa gravação datada de 9 de Março deste ano, em Valencia. Comparem e tirem conclusões.

Boa audição!


http://youtu.be/wssrWj6xU0c («*»)

http://youtu.be/7F8RsQvc23Y (I)
http://youtu.be/oyiMYV5vxBY (II)
http://youtu.be/tGoNit4Dios (III)
http://youtu.be/YPK5Z9jUaOo (IV)
 



 

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