[sempre de acordo com a antiga ortografia]

domingo, 3 de novembro de 2013



Sintra,
passeio outonal,
convite ao Presidente



[Transcrição do artigo publicado na edição de 1 de Novembro de 2013 do 'Jornal de Sintra'. Embora dirigido ao actual Presidente da Câmara Municipal de Sintra, Dr. Basílio Horta, este convite é extensivo a todos os leitores. Se me permitem, em especial, a todos os sintrenses, incluindo os muitos residentes na sede do concelho, que desconhecem a maravilha a que me reporto] 


Ainda o Senhor Presidente da Câmara andará em preparos das lides para os próximos quatro anos e, alheio a tal azáfama, eis que já o venho desencaminhar para um passeio. Desencaminhar? Paro e reparo no verbo. Bem, o melhor é afirmar a certeza de que nem o Dr. Basílio Horta autorizaria, nem eu me atreveria à perversidade de o desviar dos seus propósitos…

No entanto, venho mesmo propor uma caminhada em Sintra. Tenho absoluta certeza de que lhe proporcionará ímpar comunhão com o ambiente bem real que todos fantasiam quando pensam nesta terra tão singular, sede do concelho que lhe cabe gerir e, em simultâneo, um especial enriquecimento pessoal. Será um passeio a pé, por caminhos muito próximos do centro histórico, paradoxalmente tão pouco conhecidos dos próprios sintrenses.

Contamos com um tempo já bonançoso, depois das grossas bátegas da semana passada. Vai estupendo este Outono. Em Sintra é época de excelência. Incomparável, a luz desce as faldas da Serra até ao casario da urbe, jamais conseguindo desfazer o sortilégio de sombras perenes e magníficas da Serra. Aqui tão diferentes, os odores da terra mesclam-se em telúrica promessa de renovação, à medida que se afirma o geral concerto da natureza, com dispensa de partitura. Os sentidos, em contida exaltação, confirmam como tudo está certo. E perfeito.

Errada e imperfeita, pelo contrário, a mão do homem que, há muitos anos, não tem estado à altura do alto privilégio de Sintra. Entretanto, Senhor Presidente, em Sintra, conjuguemos o belíssimo Outono com a menos feliz realidade de Sintra, exercício algo difícil mas, inevitavelmente necessário para que não caiamos em depressivo estado de ânimo...

Com uma ténue pista quanto ao destino do passeio, já sabe que não o desafiei para grande afastamento. Tudo se passa, afinal, no perímetro da Vila Velha, numa volta em que a beleza espreita a todo o instante. Primeiramente, contudo, aconselharia o horário da tarde, cerca das quatro, de tal modo que, lá mais para o fim da passeata, aproveitemos a tão especial luz rasante crepuscular.

Comecemos, então, na Praça da República, junto ao edifício do Turismo, tomando o caminho da Regaleira. Ah, é verdade, talvez convenha munir-se de um caderno de apontamentos já que não faltarão pormenores para registar como, por exemplo, o estado dos passeios e bermas, a degradação dos lancis que põe em risco a segurança de tanta gente passante.

Caminhemos a passo conveniente, sem pressas, a cascata da Regaleira à nossa direita, o parque da Quinta do Relógio e já o palacete arabizante do lado oposto. Chegados ao esplendoroso monumento arbóreo que é a sobreira dos fetos, junto ao gradeamento, continuemos, atravessando largo, para entrar na Rua Trindade Coelho. Mal começamos a descer, A Villa Roma, à cota alta, deixa que lhe descubramos as traseiras, aspecto do discreto edifício, raro para quem apenas esteja habituado a ver-lhe a fachada, quando sobe a pequena rampa para Seteais.

Apesar de nos mantermos na mesma zona, a opção por este caminho vai permitir que nos embrenhemos num dos mais sossegados e sofisticados percursos que Sintra pode oferecer. Estamos numa rua entre quintas, de um e outro lado, da Bela Vista, Schindler e, ao fundo, depois de passar a embocadura do Caminho da Fonte dos Amores – também um espanto de beleza, com as quintas da Boiça e do Pombal – já na íngreme descida do Caminho dos Frades, primeiro a Casa do Fauno, depois a do Castanheiro, com aquela tão imponente e carcomida árvore que, já com cinco séculos de vida, nos fala do tempo dos Descobrimentos…

Prevejo que não se contenha. Sei que lhe apetecerá espreitar a paisagem além dos muros. Acontece com todos os meus convidados. A verdade é que há sempre maneira de empoleirar, de debruçar, afinal, de dar espaço à criança que nos habita. No termo da descida, eis a bifurcação da Quinta dos Alfinetes. Aí voltamos à direita pelo Caminho dos Castanhais.

Caminho dos Castanhais

Estamos a entrar em terra batida e continuamos a beneficiar de um panorama magnífico. À nossa esquerda, depois do eucaliptal, sobre as trazeiras da Vila, baloiçam-nos os olhos entre as paredes sempre verdes de um minúsculo vale, cheio de mimos. É por aqui, não faltando um bucólico tanque e água, a romper por todo o lado, que mais coincidimos com os passos de Eça de Queiroz em Sintra, aqui sim, nas suas idas e vindas, no acesso à Quinta dos Castanhais onde, com a família passou temporadas a que alude na correspondência com sua mulher, D. Emília de Castro (Resende).

Neste momento do trajecto, como soe dizer-se, já teremos a alma lavada. Em nós, já o Outono deixou as marcas do habitual feitiço e consequente fascínio. Porém, se já estávamos, então assumamos que continuamos numa esquecida zona de Sintra. É verdade, Senhor Presidente, esquecidos caminhos são estes, perigosos, escalavrados, embora a poucos metros do centro histórico. Como e porque nos espantaríamos? Então, se o próprio casco da mais nobre Sintra não está esquecido há décadas? Pois é, estamos a caír na real…

Aqui, para bom entendedor, esquecimento significa incúria. Significa aquela cultura do desleixo de que fala Jorge Sampaio ao referir-se a uma certa maneira de estar e de ser português. Cruel, por outro lado, que tenhamos de recuar dezenas de anos para vislumbrar o que era um lugar limpo e com carácter, igual a tantos outros, nacionais e estrangeiros que, apesar do progresso, não se descaracterizaram, não se degradaram e até estão em melhor estado.

Sim, não tenhamos a menor dúvida, a actual situação do Caminho dos Castanhais é algo que, em lugar classificado como Paisagem Cultural da Humanidade, noutros países europeus, seria perfeitamente impensável. Porém, o passeio continua belíssimo. É Sintra que resiste, Sintra que está e continua doída de imerecidas feridas e ofensas. Um dia virá em que tudo isto se vai alterar. Preciso é que alguma coisa se faça à altura das circunstâncias. Agora melhor, entende o Senhor Presidente o meu oculto objectivo quando o convidei para este passeio?

Contradições & saídas em tempo de crise

Mas, continuemos. Ainda estamos no Caminho dos Castanhais. Não é preciso muito chover para que fique praticamente intransitável, como aconteceu há dias. As marcas estão por aí. Em tudo isto, a imagem do desleixo. Um segmento em terra batida, outro empedrado e ainda pedaços de irregularíssima calçada, borrifada por uns salpicos de alcatrão, antes de, no termo da caminhada, voltarmos à esquerda, pela Rua Fresca, a caminho das Escadinhas da Pendoa, nas traseiras dos hotéis Tivoli e Central. Por um lado, belíssimo, por outro, a prova da nossa gritante incapacidade.

Que embaraço, não é senhor Presidente? Como podemos dar-nos ao luxo de ter esta pérola abandonada, este percurso excepcional, mas tão desprezado? E sempre apregoando que Sintra é capital do Romantismo! Verdade é que as jóias da coroa, tanto as do período romântico, tout court, como as de outras épocas, que compõem o eclético quadro sintrense, não podem estar em melhores mãos que as da Parques de Sintra Monte da Lua. De qualquer modo, além desse, há todo um património outro, de idêntico pendor e valia, que, fazendo o género de Sintra, como o Caminho dos Castanhais, não pode continuar neste estado, de inqualificável desgosto.

Em tempo de crise, apesar da crise, compete à autarquia a recuperação deste e doutros inestimáveis bens congéneres. Não venho falar-lhe de faraónicos projectos de regime mas, tão somente, de obras modestas, praticáveis, concretizáveis. Para resolução do problema em presença – afinal, apenas um entre dezenas de outros – será imprescindível o envolvimento de uma série de serviços camarários cuja dificuldade de articulação é proverbial. É imperioso conquistar o interesse dos proprietários das quintas, conceder-lhes facilidades muito expeditas para que possam cumprir o que a eles compete na concretização de obras de reabilitação, por exemplo, dos muros laterais, drenagens a montante, etc. Há que trabalhar numa perspectiva de actuação integrada, infelizmente, tão estranha à nossa cultura.

Eis umas centenas de metros, que percorremos amarrados à preocupação das melhorias e da mudança que se impõe e não pode tardar. Desde já, agradeço ao Senhor Presidente por se ter disposto a acompanhar-me nesta prova de campo. Depois das eleições, oxalá possa o passeio contribuir, ainda mais, para a motivação que lhe vamos notando nestes primeiros dias da sua abordagem aos concretos problemas de Sintra. Muito obrigado.

Entretanto, pouco mais podendo fazer, continuo a sonhar com este percurso, palmilhado pelas famílias, quando for possível virem as crianças e os mais velhos, com toda a segurança; quando, por entre a animação dos quiosques, os tilburies, as charrettes e galeras, como no tempo de Eça de Queiroz, por aqui puderem trilhar, transportando gente encantada, enquanto outros, descansando nos bancos, se deleitam em conversas, leituras ou simples contemplação. Tudo no sossego do civilizado lugar a que têm direito.

Finalmente, a esclarecer que, além da prosa nova, para compor este Passeio de Outono, Convite ao Presidente, recorri, nuns casos, à transcrição parcial e, noutros, a adaptações de textos que publiquei, quer no Jornal de Sintra quer no sintradoavesso.blogspot.com e nos últimos anos. Como nada mudou, com isto confirmo a inexorabilidade do tempo, de facto, como a sua passagem, pode deixar marcas que se vão sobrepondo, em estratos que nada nos dignificam.

[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]

 
 

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