Citação a torto e a direito,
ou sempre a torto, nunca a direito
ou sempre a torto, nunca a direito
[Pontos nos ii a propósito de uma citação rarissimamente bem aplicada. Neste texto, também, a inevitável articulação da ira de Fernando Pessoa/Bernardo Soares com a impressão estética que lhe havia suscitado a leitura de uma página do Padre António Vieira.]
Na realidade, para quem mais não domina do que a descartável cartilha de umas citações, que, para o que der e vier, dá um jeitão ter à mão, deve ser difícil passar ao lado de Pessoa, em especial, da famosa tirada "(...) Minha Pátria é a língua portuguesa (...)".
Com aquela citação, pretende-se dar a ideia de que a língua portuguesa é uma pátria comum – a um tempo virtual mas, de qualquer modo, bem real – de duzentos e não sei quantos milhões de falantes (e muito menos escreventes, porquanto, entre os espalhados pelos vários continentes, há um incrível contingente de analfabetos…) cidadãos proprietários desse inestimável património.
E, fortiori, se o poeta – e que poeta!... – o afirmou, quem se atreve a contestá-lo? Ora bem, ninguém está aqui para o contestar mas, tão somente, para enquadrar as suas citadas palavras, e na presunção de considerar que são redutoramente aplicadas por quem, tão amiúde, a propósito e a despropósito, as cita e continua a citar. Eis-me, portanto, vindo a terreiro, com o pedido de que me acompanhem na tentativa de esclarecimento.
Pátria estética
As seis palavras em apreço constituem um inteiro período, uma ideia que, na sua inequívoca autonomia, não deixa de se articular com todo o parágrafo em que se insere, isto é, com as ideias precedentes e com as subsequentes. O melhor é mesmo transcrever todo o parágrafo:
“(…) Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. (…)”
Ora aqui está parte do contexto em que a famosa tirada não pode deixar de ser enquadrada, reinserida e reintegrada, para se articular, como imperioso se torna, com os discursos circunstantes. Se bem compreendem, a pátria de Pessoa (Bernardo Soares) nada tem a ver com um território de contornos definidos mas, isso sim, é o lugar geométrico de uma estética. De uma estética, repito. Nada de confusões!
Essa pátria é um lugar de tal modo definido, e exigente no contorno das suas fronteiras, que o poeta, recorrendo à sua máxima capacidade de expressivo convencimento do outro, não hesita em fazer uso de um discurso da maior virulência, sem papas na língua, para que dúvidas não restem quanto aos seus sentimentos. E então evidencia a revolta das entranhas, do artista que se ofende e sofre perante o produto defeituoso e degradado que não pode mas devia ser um artefacto.
Quando, nos discursos de circunstância, um qualquer oficiante de serviço se permite citar; quando em qualquer folheca ordinária, um ensaísta de segunda ou terceira classe se permite epigrafar o seu discurso com estas seis palavras de "O Livro do Desassossego", pois não sei o que vos confesse em relação à revolta das minhas próprias tripas…
Ortografia como gente
Ultimamente, então, os defensores da necessidade de concretizar um acordo ortográfico, têm abusado, com o maior despudor – diria mesmo que têm manipulado – ultrajado a memória do poeta, no constante afã de trazer à colação a referida sentença. E, se assim o escrevo é porque não acredito que desconheçam o parágrafo imediatamente seguinte ao que acima transcrevi, que passo a reproduzir, para completa satisfação dos que, eventualmente, o desconheçam:
“(…) Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.”
Deixem-me adivinhar. Aqueles que já não se lembram e os outros, que desconheciam de todo este remate, estão agora atónitos perante esta confissão do poeta que se roja, deleitado, rendido à grandeza, à magnificência da ortografia, a visível vertente da língua em que comunicamos.
Como não perceber a omissão dos tais oficiantes e pseudo-ensaístas? Convém-lhes, naturalmente. Convém-lhes que permaneça obscura, na sombra e reserva das estantes e do silêncio, a opinião de um dos maiores ícones da Arte Literária em Língua Portuguesa de todos os tempos, o nosso querido Fernando, cuja opinião, como acabo de lembrar através da transcrição supra, sempre seria frontalmente contrária a revisões ortográficas que escondessem a herança linguística que usamos a toda a hora e momento.
Certeza sinfónica
Finalmente, não vos deixaria sem que ficassem descansados quanto aos precedentes textuais daquela torrente de indignação de Pessoa-Bernardo Soares. A razão remota e imediata é fruto de fortíssima impressão estética, suscitada pela leitura de uma página de Vieira. Melhor será que, novamente, demos voz ao poeta, transcrevendo, portanto, o parágrafo anterior àquele em que está plasmada a citação em questão:
”(…) Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta, o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio…» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombroso vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância, de que não tenho saudades; é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de já não poder ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica(…)”
O trecho de Vieira, que tanto emocionou o desassossegado, é pura melopeia, na realidade, é o melhor português de todos os tempos, vertido em páginas que só permanecem mortas, que não se fazem ouvir em toda a sua riqueza e grande certeza sinfónica, nas nossas casas, nas nossas escolas, em todos os locais onde seria suposto enriquecerem-nos, porque andamos todos muito preocupados com assuntos de lana caprina e, enfim, muito distraídos do que é essencial.
Logo que vos for possível, do Livro do Desassossego de Bernardo Soares*, leiam o texto completo do qual extraí os três parágrafos. E quando vos sugiro a completa leitura, apenas vos peço o tempo bastante para uma, só uma página, a tanto se reduz a peça de Arte que, saboreada à mesa onde o trecho de Vieira certamente não faltará, vos concederá, estou certo, um dos máximos gozos estéticos que se podem dar ao luxo.
Verão a razão que assiste quando me insurjo contra esses videirinhos das citações…
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