[sempre de acordo com a antiga ortografia]
domingo, 13 de julho de 2014
Exemplar
[transcrição do artigo publicado na edição de 11 de Julho do 'Jornal de Sintra'. Atenção à foto.]
Tal como sempre tem acontecido ao longo de décadas de Festival, também no passado domingo, estive na Quinta da Piedade, mais uma vez, não só para a partilha da música em lugar único que as circunstâncias se encarregaram de mitificar, mas também para o encontro com amigos que raramente ali faltam ao apelo anual.
Ora bem, como preâmbulo do episódio que hoje pretendo partilhar, convém lembrar que o programa do 7º evento da presente edição do Festival de Sintra, subordinado ao título Recital Piano e Violino, Programa Luso-brasileiro, interpretado por João Paulo Santos e Bruno Monteiro, integrava obras de Fernando Lopes Graça.
Pois bem, interpretadas naquele santuário – neste escrito não me deterei em avaliações que reservarei para outra altura – as peças do compositor tiveram a inevitável consequência de suscitar a longínqua lembrança de uma cena que ali presenciei há não sei quantos, talvez uns quarenta e muitos anos. E, meus caros leitores, de tal cena, sabia eu, havia registo fotográfico nos arquivos de Teresa, Condessa Schönborn-Wiesentheid, neta da Senhora Marquesa de Cadaval.
Aliás, tanto assim acontece que tal foto foi utilizada como material documental integrante do filme biográfico Marquesa de Cadaval, uma Vida de Cultura de que sou co-autor. Claro é que se trata da que reproduzo nestas colunas, como ilustração, vendo-se o compositor sentado num dos degraus da escadaria que dá acesso ao terreiro onde é montada a plateia.
Mas, uma vez desencadeada, como parar a torrente de memórias, em especial, as que articulam Lopes Graça com a Senhora Marquesa? Não é possível. Evidentemente. Então, chegado é o momento de vos dar a conhecer o tal episódio cuja partilha anunciei no início do segundo parágrafo. Para o efeito, não posso deixar de recorrer ao testemunho da grande pianista Olga Prats cuja relação, tanto com a Senhora Marquesa, de quem era afilhada, como com o Graça era mesmo muito próxima.
Terreno fértil
Preciso recuar no tempo para lembrar como crescia e se acentuava a repressão por parte do antigo regime. Para se ter uma ideia, na década de cinquenta, as orquestras nacionais foram proibidas de interpretar obras de Fernando Lopes-Graça, tendo-lhe sido sonegados os direitos de autor e também anulado o diploma de professor do ensino particular, facto que o obrigou a abandonar a Academia dos Amadores de Música.
Entretanto, com o êxito (?!) que se imagina, ia ele fazendo a via sacra do Sassetti e Valentim de Carvalho, editores de música. Perfeitamente ao corrente do que sucedia, a mesma Dona Olga – que, perante o próprio Salazar se responsabilizava, pessoalmente, pelos grandes artistas do bloco de leste que vinham a Portugal com o seu patrocínio – mal soube que o compositor estava a passar grandes privações, pediu ao seu colaborador Artur dos Ramos Prats, pai da pianista, que lhe fizesse chegar um cheque com um contributo.
Como tudo se processava com enorme discrição, Olga Prats desconhece o valor do donativo, apenas recordando ter seu pai confirmado que a Senhora Marquesa fora muito, muito generosa. Era esta a sua estirpe. Originária da mais alta nobreza europeia, constantemente lembrava a perspectiva em que seu pai falava do privilégio do berço, ou seja, na do préstimo aos demais, sem quaisquer barreiras, personificando a noção grega de áristos, excelente, o melhor, o mais nobre, que nada tem a ver com linhagem.
Só para os medíocres, a ideologia política poderá funcionar como obstáculo à partilha dos mais elevados sentimentos, em especial, daqueles que conotamos com a estética e a beleza. O cidadão Lopes Graça, membro do Partido Comunista Português desde meados da década de quarenta, era um cultor da Arte e, enquanto homem, o tal próximo de todo o cristão, naquele momento, até passava necessidades. Era este, por maioria de razões, o terreno fértil à actuação de quem o ex-Presidente da República Jorge Sampaio designou como a mais desinteressada mecenas. Sem quaisquer barreiras, sublinhemos.
Como acabam de perceber, a foto também fala de uma história entre os dois protagonistas, informalmente sentados. Próximos. Exemplarmente próximos.
[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]
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