Casa dos Patudos,
evocação pessoal de um avô muito especial
[facebook, 21.10.2014]
Ao partilhar um 'post' da minha amiga Emília Reis sobre a Casa de José Relvas em Alpiarça, eis a oportunidade para mais uns dedos de conversa convosco. Não me têm aqui para uma descrição da Casa dos Patudos, informação essa disponível em vários suportes, mesmo na net. Atenção, no entanto, porque nem sempre as informações são absolutamente fidedignas ou, mesmo sendo-o, podem induzir o leitor menos atento em erros grosseiros.
O que me traz à Casa dos Patudos é o facto de o meu avô paterno ali ter sido educado. Ligações familiares entre a minha família ribatejana e a de José Relvas, que não vêm para o caso, já que o seu esclarecimento poderia tornar-se fastidioso, explicam que, em criança, o meu avô tivesse ido viver para Alpiarça, precisamente na altura em que Carlos Relvas inaugurou a Casa dos Patudos.
Sempre em contacto com a casa dos meus bisavós no Pombalinho, Golegã, a verdade é que lá viveu a infância e juventude até vir para Lisboa, antes de terminada a primeira década do século passado. Portanto, cerca de uma dúzia de anos de vivência num lugar onde, acima de tudo, se cultivava a Literatura, as Artes Plásticas e, muito, a Música. José Relvas, filho de Carlos Relvas, o grande pioneiro da fotografia em Portugal e abastado lavrador, nascera na Golegã em 1858 e veio a morrer, em Alpiarça em 1929, amargurado, carregando com o desgosto da morte dos dois filhos, um dos quais por suicídio.
Foi ele, como se sabe, quem proclamou a República da varanda dos Paços do Concelho de Lisboa. Ministro das Finanças, Embaixador em Madrid, homem cultivadíssimo, senhor de grande fortuna pessoal, com os melhores contactos pessoais, de íntima amizade, no meio artístico, algo que bem ilustrarei lembrando que José Malhoa tinha atelier nos Patudos…
Muitas vezes, ouvi ao meu avô um testemunho que me encantava particularmente. Nos Patudos, José Relvas era procurado, pessoalmente, por grandes colecionadores e marchands internacionais que o incluíam nos seus circuitos e périplos de negócios de antiguidades. Sabiam o que lhe interessava, adivinhavam-lhe os desejos e, naturalmente, tinham-no entre os seus melhores clientes europeus.
É preciso ter este detalhe em consideração para se perceber como uma visita aos Patudos é um deslumbramento para o qual a maioria dos portugueses ainda não foi desperta. Cerâmicas e pintura de Columbano Bordalo Pinheiro, faiança portuguesa, a maior colecção particular de tapetes de Arraiolos, espantosos painéis azulejares, quadros de José Malhoa, Silva Porto ou Constantino Fernandes, serviços e peças singulares de Companhia das Índias, de Sèvres (a célebre ‘Mesa das Artes’), cerâmicas Vista Alegre por ele próprio encomendada, mobiliário estilo Império, etc, etc.
Uma biblioteca magnífica, uma sala da Música que é um assombro e a própria casa, desenhada por Raul Lino, enorme, interessantíssima, nem toda visitável. Nem por sombras, terei dado uma ideia sequer aproximada do recheio patrimonial da Casa dos Patudos. É preciso ir. E quem for, estará, de facto, perante o paradigma do que é uma genuína casa museu, na acepção de que acolhe preciosidades únicas.
Por exemplo, é lá que estão reunidos os quatro painéis da autoria de Francisco Henriques, do retábulo da capela-mor da Sé de Évora, com temas marianos: a Anunciação, a Natividade, a Adoração dos Magos e a Apresentação do Menino no Templo. Pintura de excepcional qualidade, do principio do século XVI (ao tempo do Venturoso, Senhor D. Manuel I) cujo acesso e estudo só é possível se ali se deslocarem.
Não posso recomendar mais uma visita a este santuário de arte. Tenho acompanhado amigos. Tenho feito promessas de «excursões» ainda não cumpridas, como aquela que a minha querida amiga Margarida de Lemos ouviu quando ambos visitámos a Casa do Cipestre, também de Raul Lino, por altura do fim do primeiro ciclo do Colóquio Raul Lino, tão bem recebidos que fomos pelo Martinho Lino Pimentel que, curiosamente, ainda não conhecia a Casa dos Patudos.
Permitam que volte ao avô. Não admira que ele tivesse sido marcado para a vida por uma educação excepcional que, pouco mais tarde, haveria de o determinar a constantes «réplicas», como a de dedicar a vida à arte fotográfica, coleccionar livros, partituras, instrumentos musicais de extraordinária manufactura, como o piano Gotrian Steinweg ('antepassado' do Steinway), arpas, um órgão e violinos Klötz, um dos quais, em muito mau momento da vida, o meu pai seria obrigado a vender a Antonino David, concertino da Orquestra da Emissora Nacional.
E, muito importante para todos nós, seus filhos e netos, a facultar cursos superiores de Música ao meu pai, violino, e às tias, violino e piano, os três diplomados em Ciências musicais pelo Conservatório de Lisboa. Ele próprio era um bom pianista amador. A minha avó cantava. Em Belém, já com os filhos quase adultos, o avô passou a promover uns serões musicais, em finais da década de trinta e na de quarenta, cuja fama se manteve por muito tempo.
Desse ambiente, da cultura vivida em casa, sem ostentação que não fosse a de estar à altura do privilégio que fora essa educação, ainda nós herdámos um património, manos e primos, que tanto nos determina a um natural orgulho por esse passado.
evocação pessoal de um avô muito especial
[facebook, 21.10.2014]
Ao partilhar um 'post' da minha amiga Emília Reis sobre a Casa de José Relvas em Alpiarça, eis a oportunidade para mais uns dedos de conversa convosco. Não me têm aqui para uma descrição da Casa dos Patudos, informação essa disponível em vários suportes, mesmo na net. Atenção, no entanto, porque nem sempre as informações são absolutamente fidedignas ou, mesmo sendo-o, podem induzir o leitor menos atento em erros grosseiros.
O que me traz à Casa dos Patudos é o facto de o meu avô paterno ali ter sido educado. Ligações familiares entre a minha família ribatejana e a de José Relvas, que não vêm para o caso, já que o seu esclarecimento poderia tornar-se fastidioso, explicam que, em criança, o meu avô tivesse ido viver para Alpiarça, precisamente na altura em que Carlos Relvas inaugurou a Casa dos Patudos.
Sempre em contacto com a casa dos meus bisavós no Pombalinho, Golegã, a verdade é que lá viveu a infância e juventude até vir para Lisboa, antes de terminada a primeira década do século passado. Portanto, cerca de uma dúzia de anos de vivência num lugar onde, acima de tudo, se cultivava a Literatura, as Artes Plásticas e, muito, a Música. José Relvas, filho de Carlos Relvas, o grande pioneiro da fotografia em Portugal e abastado lavrador, nascera na Golegã em 1858 e veio a morrer, em Alpiarça em 1929, amargurado, carregando com o desgosto da morte dos dois filhos, um dos quais por suicídio.
Foi ele, como se sabe, quem proclamou a República da varanda dos Paços do Concelho de Lisboa. Ministro das Finanças, Embaixador em Madrid, homem cultivadíssimo, senhor de grande fortuna pessoal, com os melhores contactos pessoais, de íntima amizade, no meio artístico, algo que bem ilustrarei lembrando que José Malhoa tinha atelier nos Patudos…
Muitas vezes, ouvi ao meu avô um testemunho que me encantava particularmente. Nos Patudos, José Relvas era procurado, pessoalmente, por grandes colecionadores e marchands internacionais que o incluíam nos seus circuitos e périplos de negócios de antiguidades. Sabiam o que lhe interessava, adivinhavam-lhe os desejos e, naturalmente, tinham-no entre os seus melhores clientes europeus.
É preciso ter este detalhe em consideração para se perceber como uma visita aos Patudos é um deslumbramento para o qual a maioria dos portugueses ainda não foi desperta. Cerâmicas e pintura de Columbano Bordalo Pinheiro, faiança portuguesa, a maior colecção particular de tapetes de Arraiolos, espantosos painéis azulejares, quadros de José Malhoa, Silva Porto ou Constantino Fernandes, serviços e peças singulares de Companhia das Índias, de Sèvres (a célebre ‘Mesa das Artes’), cerâmicas Vista Alegre por ele próprio encomendada, mobiliário estilo Império, etc, etc.
Uma biblioteca magnífica, uma sala da Música que é um assombro e a própria casa, desenhada por Raul Lino, enorme, interessantíssima, nem toda visitável. Nem por sombras, terei dado uma ideia sequer aproximada do recheio patrimonial da Casa dos Patudos. É preciso ir. E quem for, estará, de facto, perante o paradigma do que é uma genuína casa museu, na acepção de que acolhe preciosidades únicas.
Por exemplo, é lá que estão reunidos os quatro painéis da autoria de Francisco Henriques, do retábulo da capela-mor da Sé de Évora, com temas marianos: a Anunciação, a Natividade, a Adoração dos Magos e a Apresentação do Menino no Templo. Pintura de excepcional qualidade, do principio do século XVI (ao tempo do Venturoso, Senhor D. Manuel I) cujo acesso e estudo só é possível se ali se deslocarem.
Não posso recomendar mais uma visita a este santuário de arte. Tenho acompanhado amigos. Tenho feito promessas de «excursões» ainda não cumpridas, como aquela que a minha querida amiga Margarida de Lemos ouviu quando ambos visitámos a Casa do Cipestre, também de Raul Lino, por altura do fim do primeiro ciclo do Colóquio Raul Lino, tão bem recebidos que fomos pelo Martinho Lino Pimentel que, curiosamente, ainda não conhecia a Casa dos Patudos.
Permitam que volte ao avô. Não admira que ele tivesse sido marcado para a vida por uma educação excepcional que, pouco mais tarde, haveria de o determinar a constantes «réplicas», como a de dedicar a vida à arte fotográfica, coleccionar livros, partituras, instrumentos musicais de extraordinária manufactura, como o piano Gotrian Steinweg ('antepassado' do Steinway), arpas, um órgão e violinos Klötz, um dos quais, em muito mau momento da vida, o meu pai seria obrigado a vender a Antonino David, concertino da Orquestra da Emissora Nacional.
E, muito importante para todos nós, seus filhos e netos, a facultar cursos superiores de Música ao meu pai, violino, e às tias, violino e piano, os três diplomados em Ciências musicais pelo Conservatório de Lisboa. Ele próprio era um bom pianista amador. A minha avó cantava. Em Belém, já com os filhos quase adultos, o avô passou a promover uns serões musicais, em finais da década de trinta e na de quarenta, cuja fama se manteve por muito tempo.
Desse ambiente, da cultura vivida em casa, sem ostentação que não fosse a de estar à altura do privilégio que fora essa educação, ainda nós herdámos um património, manos e primos, que tanto nos determina a um natural orgulho por esse passado.
Emilia Reis adicionou 4 fotos novas.
Como complemento à interessante Exposição Virtual sobre Raul Lino deixo algumas fotos exteriores (no interior não é permitido fotografar) da Casa dos Patudos, em Alpiarça, que construiu para José Relvas. Numa barra com 10 azulejos pode ler-se a seguinte inscrição:
* PROJECTADA . EM 1904 E . EDIFICADA . EM 1905 ARCHITECTO DESTAS . OBRAS RAUL LINO DE LISBOA *
É interessante que o mobiliário da casa foi também criado por Raul Lino
* PROJECTADA . EM 1904 E . EDIFICADA . EM 1905 ARCHITECTO DESTAS . OBRAS RAUL LINO DE LISBOA *
É interessante que o mobiliário da casa foi também criado por Raul Lino
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