[sempre de acordo com a antiga ortografia]

terça-feira, 8 de dezembro de 2015


O Funeral de Mozart - Conclusão

[Eis a última parte do texto em que, uma a uma, são desconstruídas as ideias que prevalecem acerca do assunto que aqui trouxe há apenas algumas horas. Indispensável a quem não queira continuar a acolher, como verdadeiros, episódios em que a biografia foi ficcionada, romanceada].

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Depois da introdução, no primeiro dos artigos desta pequena série em que, à guisa de revisão da matéria, voltei a pôr em comum alguns dos conhecimentos que já tinha tido oportunidade de partilhar com os leitores em anteriores ocasiões, começaria por acrescentar que não é estranho nem problemático que a morte de um grande artista tenha suscitado um tal interesse, ao ponto de estar na génese de outras obras, desde o fim do século dezoito até à actualidade.

A verdade, os factos e os artefactos

A Arte – e nela incluída literatura, o teatro, a música, o drama lírico, o cinema - sempre produziu artefactos, total ou parcialmente inspirados em factos reais e ficcionados.O único e substancial problema é que o grande público, especialmente a partir do filme de Forman, passou a consumir como facto – real, verdadeiro, biográfico – aquilo que não passa de artefacto.

Daí, ter-se-me imposto o grato dever de esclarecer os meus leitores dos artigos de cultura musical, acerca da verdade dos factos uma vez que, segundo Nicolas Boileau (1636-1711), "(...) rien est beau que le vrai / le vrai seul est aimable / il doit reigner partout / et même dans la fable… (...)"

Em resultado de investigações, mais ou menos recentes, vai sendo possível fazer a tal desconstrução que referi, para reconstruir o que é forçoso seja por todos partilhado, isto é, a biografia limpa de contributos romanceados, que só têm prejudicado o entendimento do homem e do artista absolutamente fascinante que Mozart foi enquanto paradigma do génio.

O caso do funeral deu origem à fantasia que mais flagrantemente entra pela porta da verdade e, de tal modo se entranhou nesse sagrado território, que passou a ser considerada efectivamente verdadeira, ainda que possa ser desmistificada com a maior facilidade. É esse o objectivo deste artigo que, para o efeito, se socorre de uma espalda histórica, cerca de dez anos anterior à morte do compositor.

Entremos, pois, na análise de factos concretos. De todos os decretos publicados no tempo do Imperador José II, aqueles que provocaram reacções mais violentas por parte da população - cujos costumes e tradições foram pura e simplesmente ignorados – terão sido os referentes à vida religiosa e aos novos regulamentos para os funerais.
 
Protótipo do déspota iluminado, o monarca governava na presunção de que decidia bem e, naturalmente, para benefício dos súbditos. Em 25 de Janeiro de 1782, José II fizera publicar uma nova tabela de preços dos ofícios religiosos, para as classes média e baixa de Viena e das circunscrições administrativas dos subúrbios. Vamos deter-nos um pouco nesta legislação para tentar que verdade subjaz à lenda.

O vil metal

A tabela em questão tinha sido inspirada num decreto análogo, destinado ao Arquiducado da Baixa Áustria, nos termos do qual um cidadão com bens, independentemente da sua classe social, poderia optar, entre as diferentes categorias de preço, conforme lhe aprouvesse, “(…) de tal modo que ninguém fosse obrigado a pagar despesas superiores às que, livremente, tinha escolhido (…)”.

Os pobres, cuja situação podia ser documentalmente atestada, por declaração ajuramentada ou por um juiz, não tinham de pagar quaisquer despesas. Por outro lado, as classes altas eram obrigadas a despender o dobro do total dos preços estabelecidos. Por altura da morte do compositor ainda vigorava a tabela em questão. Foi Gottfried van Swieten quem se encarregou de tratar do enterro de terceira classe que importou em oito Florins e cinquenta e seis Cruzados.

Se tivermos em consideração que cada Florim tinha sessenta Cruzados, pode afirmar-se que as despesas foram de quase nove Florins. Por outro lado, para que se fique com uma ideia aproximada da equivalência actual dos valores em causa, cada Florim valia cerca de trinta e cinco Euros. Portanto, o enterro teria custado trezentos e quinze Euros, ou seja, apenas um pouco menos que o ordenado anual pago por Wolfgang Mozart e sua mulher Constanze à criada Liserl Schwemmer, em 1784.

Avanço com estes pormenores porque correspondem a matéria investigada, absolutamente inequívoca. Mas não introduzirei mais valores e equivalências à moeda hoje em circulação porque sempre haverá grandes discrepâncias. No entanto, reparem. Se o vencimento da empregada fosse actualizado, mesmo em termos do ordenado mínimo nacional (português…), para se estabelecer o termo de comparação com o enterro, teríamos 450,00 Euros/mês x (apenas) 12 meses = 5.400,00 Euros!...

A propósito, um pequeno aparte para perceber como, em Viena, os grandes artistas eram apreciados e bem pagos. Por exemplo, um soprano tão conhecido como Nancy Storace - a quem Mozart dedicou a famosíssima ária de concerto Ch’io mi scordi di te?... Non temer, amato bene, K. 505 - recebia quatro mil e quinhentos Florins, em 1787. Num único evento, um bom solista podia ganhar tanto como quatrocentos e cinquenta Florins!

Cortejo fúnebre e cerimónias religiosas

Voltemos ao cerne da questão. Tendo em consideração as normas da praxe, é perfeitamente possível reconstituir o cortejo fúnebre da tarde de 6 de Dezembro, no percurso entre a casa da Rauhensteingasse onde Mozart morreu e a Catedral de Santo Estêvão. À cabeça, o porta crucifixo seguido pelos quatro homens com o caixão, coberto por tecido negro do cerimonial, flanqueados por mais quatro acólitos transportando lanternas.

Constanze estaria acompanhada por outros membros da sua família (Weber). É dada como certa a presença de Johann Georg Albrechtsberger e dos alunos do compositor, Franz Jacob Freystädtler e Otto Harwig que, assim o confirmaram. Anselm Huttenbrenner, aluno de António Salieri, afiançou que o seu mestre participou na cerimónia. Finalmente, como não podia deixar de ser, Franz Xaver Sussmayr, o aluno de Mozart que terminou o Requiem após a morte do compositor, também se incorporou.

Conhecem-se todos os pormenores da encomendação da alma, através da compilação dos rituais do ano de 1791, da autoria de Johann Schwerding, sabendo-se que, de acordo com a designação de então, o caixão foi deixado a descansar numa capela mortuária da catedral de Sto Estêvão, aguardando o transporte, em carreta fúnebre puxada por dois cavalos, para o cemitério de São Marcos, cujo aluguer custou mais três Florins.
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Mozart foi enterrado numa campa individual vulgar (allgemeines einfaches Grab), designação segundo a qual, a palavra vulgar (allgemein), nos termos da prática na era Josefina, não equivale a comum ou comunal (gemeinschaftlich). Não se tratava de uma campa de pobre no sentido da vala comum. Era, isso sim, uma campa simples que, ao contrário do jazigo, não concedia o direito de propriedade, podendo ser removida e reocupada após dez anos. Esta a verdade.
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Acresce o facto de nenhum dos regulamentos, vigentes ao tempo, impedir a colocação de uma cruz ou lápide. O decreto imperial de 12 de Agosto de 1788 estabelecia que “(…) cada pessoa é autorizada a ter sobre a campa o símbolo adequado à sua religião (…)”. Sem qualquer margem para dúvida, os contemporâneos de Mozart consideraram apropriada a colocação de uma lápide tumular cujo epitáfio [simplesmente assinado “K”, provavelmente Leopold Kozeluch], publicado nos jornais Wiener Zeitung, de 31 de Dezembro de 1791, e Grazer Burgerzeitung, de 3 de Janeiro de 1792, assim rezava:

MOZARDI
TUMULO INSCRIBENDUM.


Qui jacet hic,
Chordis Infans Miracula Mundi
Auxit;
et Orpheum Vir superavit.
Abi !
Et animae ejus bene precare!


portanto, um texto exaltando as qualidades daquele que ali jazia, Não só como menino-prodígio mas também como tendo suplantado o próprio Apolo, e, finalmente, pedindo orações pela sua alma.

O funeral de terceira classe nada tinha a ver com um Armenbegrabniss, isto é, um enterro de pobre. Na realidade, correspondia à categoria de ritual habitual na classe média, que o próprio Barão Gottfried van Swieten, grande amigo e Irmão maçon do próprio Mozart, completamente integrado na etiqueta da Corte, considerou adequado à condição do compositor. Não foram, portanto, razões de dinheiro que dominaram os arranjos para este funeral mas preconceitos ainda muito enraizados contra os que levavam vida de artista. Até na morte, Mozart era despachado pelos lacaios imperiais a quem julgava ter escapado ao deixar Salzburg dez anos antes.

Ainda que, neste domínio, haja mesmo muito mais informação a disponibilizar, terminaria com uma referência às duas grandes homenagens, na semana seguinte ao enterro, em especial as exéquias levadas a cabo na igreja de São Miguel, junto ao Hofburg, em Viena, no dia 10 de Dezembro de 1791 – com elevadas despesas de serviço religioso, sem mais encargos porque os músicos não cobraram - e, quatro dias depois, em Praga, com um brilho absolutamente invulgar, contando com grande orquestra, três coros, perante uma audiência de mais de quatro mil pessoas.
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Não esqueçam os leitores o que nos trouxe até aqui: apagar a ideia, fabricada durante o período romântico, posteriormente aproveitada e divulgada como verdade adquirida, segundo a qual a Mozart só convém a aura do pobre artista sofredor, sempre infeliz, explorado por tudo e por todos, desgraçado na morte e, até no próprio enterro, um indigente que teria ido parar à vala comum.

Nada mais falso!

Quod erat demonstrandum!
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Bibliografia:
-Dickson, P.G.M., " Finance and Government under Maria Theresia 1740-1780", Oxford, 1987;
-Steptoe, A., "Mozart, Joseph II and Social Sensitivity, Music Revue, 43 /1982);
-Schenk, E., "Wolfgang Amadeus Mozart, Eine Biographie, Zurich, 1955;
-Röhrig, F., "Das Religiöse Leben Wiens zwischen Barock und Aufklärung"



 

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