[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 26 de abril de 2010


Sintra, lagoa do desleixo


Apressada e compreensivelmente, na própria tarde da tragédia, e sem qualquer vontade de encarar as televisões que procuravam obter as suas declarações, o Presidente da Câmara Municipal de Sintra, apenas dizia que os serviços da autarquia já tinham intimado o dono do terreno a drenar a água acumulada. Pois. A verdade, indesmentível, é que dois miúdos acabavam de morrer numa lagoa do Cacém.

Desconfio que sei onde tudo aconteceu mas a exactidão do local pouco interessa. Não estou a fazer notícia. Não tenho de estar preocupado com as regras da pirâmide da comunicação que, certamente, terão sido respeitadas pelos homens dos media encarregados de informar o facto. O que me interessa é trazer à colação a evidência de mais um desleixo que custou a vida de crianças.

Tudo isto é tanto mais lamentável quanto, passados dois ou três dias, a água tinha sido escoada. Desconheço que entidade terá concretizado tão atrasada operação, se a autarquia, se o proprietário. Pouco importa o pormenor. Agora, que o desastre já sucedeu, agora, que toda a gente chora lágrimas evitáveis, o luto que importa fazer não pode deixar de implicar o apuramento de responsabilidades. Se tal não for feito, ainda menos estaremos à altura de tão lamentável circunstância.

Inquestionavelmente, trata-se de negligência grosseira. Não poupemos os adjectivos. Descuido escandaloso, mais um vergonhoso episódio, daqueles que não aconteceriam se, entre nós, portugueses, não estivesse tão entranhada, florescente e próspera, a designada cultura do desleixo, contra a qual o Presidente Jorge Sampaio tantas vezes lutou, a mesma hedionda cultura que, à modesta escala deste blogue, aqui tenho continuado a denunciar, contra nós, sintrenses.

A propósito, recorro a um argumento de autoridade. Goste-se ou não do estilo, sempre que a oportunidade se lhe oferece, a verdade é que o Dr. Marinho Pinto, Bastonário da Ordem dos Advogados, não tem poupado as palavras, com o objectivo de contribuir para a dignificação dos actos da administração, quer considerada a nível central quer local.

Ora bem, a oportunidade ofereceu-se-lhe, precisamente no dia seguinte ao da tragédia, quando, entrevistado por Conceição Lino, no programa da SIC, Nós por cá, e perante um caso absolutamente idêntico, no Norte do país, considerou que a possibilidade de uma ocorrência com tais contornos se inscrever na classificação de homicídio por negligência.

Desconheço que diligências terão feito ou farão as famílias das crianças que perderam a vida na famigerada lagoa do Cacém. Entretanto, uma coisa gostaria de convosco partilhar, ou seja, a vontade de que esta seria uma daquelas circunstâncias de crime público, que não carecem de queixa individual para serem devidamente enquadradas pelos tribunais. Fosse essa a situação, não tenho a menor dúvida de que muitos seríamos agora a exigir que justiça se fizesse, doesse a quem doesse.

Quem se atrasou a cumprir a determinação da autarquia? Será lícito (e justo?...)considerar que a responsabilidade da Câmara Municipal de Sintra terminou com o aviso dirigido ao proprietário do terreno? Ou, mais razoável e racionalmente, não será de entender como criminoso relaxo, a atitude dos serviços camarários, que não terão controlado o prazo de execução imediata da referida determinação? E, ainda outra coisa, aquele fatídico terreno, transformado em criminosa lagoa, não deveria ter sido oportuna e correctamente vedado?

Por favor, haja quem se digne assumir as responsabilidades decorrentes deste tristíssimo caso. Morreram duas crianças que mereciam andar por aí, no gozo do seu direito à vida. Trata-se de mais um atentado à segurança das pessoas. É para esse efeito que nós, contribuintes sintrenses, pomos à disposição da comunidade, os meios necessários para que se exerça a autoridade democrática de que, inequivocamente, a autarquia está investida.

Inequivocamente, meus senhores, inequivocamente!... Por isso, ou somos corajosamente consequentes ou, como há tanto tempo acontece, não passamos de uma cambada de bandalhos.


8 comentários:

J.P. Gonçalves disse...

Pergunta: numa escala de 0 a 100 qual a vossa opinião sobre a eficácia dos serviços da Câmara a todos os níveis da sua actuação?
Eu não me atrevo a sugerir um número... talvez pecasse por excesso...

Ás famílias, as minhas condolências.

Anónimo disse...

-100! Respondendo ao comentário de João Gonçalves. E o que a mim mais me custa, é o ter de trabalhar no meio da bandalheira que é a cms, os que são minimamente empenhados são mal vistos quer por colegas quer pelas chefias.São gerações de pais e filhos, primas e tios, cartões de partidos que se encobrem uns aos outros!

Margarida Ruivo disse...

Acho que não devemos parar.
Se as famílias exigirem justiça e se houver julgamento cada um de nós é testemunha de defesa dos miúdos que morreram.
João Cachado, Podiam ser os meus filhos ou os seus netos,
Margarida Ruivo

Anónimo disse...

Completamente de acordo com o Dr João, infelizmente, mais uma vez.A culpa morre sempre solteira e quem prevarica continua com o seu nariz empinado a fanfarronar e a «aparecer em frente às câmaras»invocando o ar da mais completa tristeza...
Também é verdade que nem todos os funcionários da CMS são incompetentes ou desleixados e que deveriam, isso sim, ser avaliadas algumas chefias, sobretudo aquelas que lá foram colocadas para pagamento de determinados favores que todos conhecemos e que andam a pavonear-se, pela volta do duche,à custa de todos nós.
Pobres filhos de Sintra, a quem estão eles entregues...
Margarida

Fernando Castelo disse...

Meu caro João Cachado,

Ao ler o artigo de Opinião com o título "A morte saiu à rua", da autoria do Juiz Desembargador Rui Rangel e publicado no Correio da Manhã de 22 deste mês, estou em crer que percebo a pouca exuberância televisiva do presidente da CMSintra, que até me deu a impressão – desculpar-me-á se estou enganado – de não se querer voltar para a câmara da televisão, facto que me causou imensa estranheza e custa a admitir.

Ora o Dr. Rui Rangel, numa repartição de responsabilidades, escreve: “Da Câmara de Sintra, porque é co-responsável na partilha dessa responsabilidade, quer por acção quer por omissão, na medida em que a sua acção não se cinge apenas à notificação do proprietário para drenar o terreno. No limite, é responsável por tudo o que se passa no concelho. Legalmente, podia e devia ter procedido à drenagem do terreno, que estava assim há mais de três anos, por omissão do dever de agir do proprietário”.

Curiosamente, a avaliação correcta passa pela data e teor completo da invocada “notificação” camarária, documento que, sem contornos conhecidos de confidencialidade, parece estar a ser protegido de chegar ao conhecimento público.

O Jogo do Tempo tentará que este drama seja esquecido, seguindo as mesmas pisadas do que sucedeu em 17 de Agosto, quando um jovem morreu na “piscina” improvisada de uma pedreira em Montelavar.

Tal como as mortes de duas irmãs em Belas, ocorridas em Fevereiro de 2008, cujo advogado da família, dois anos depois, ainda aguardava “documentos solicitados à Câmara de Sintra e à Estradas de Portugal", acabando por invocar "conflito de interesses" e uma "questão ética", para sair do processo.

Estes casos levam o sofrimento às famílias e amigos e à consternação generalizada de quantos sentem estes dramas como sendo seus e pensam nas promessas feitas, eleições após eleições, de piscinas ou outras formas de ocupação de jovens e seus tempos livres.

Neste quadro, será que a grande maioria dos sintrenses sente uma razoável apetência para o sofrimento? Evidentemente que não, tornaram-se foi vítimas de uma prometida “dedicação” em que acreditaram.

Ana Maria disse...

É com profunda tristeza que
comento o seu texto. Penso que tem toda a razão.
Como costuma dizer-se
"a culpa não pode morrer solteira".
Tenho um filho e uma sobrinha
na Escola Gama Barros,
colegas dos estudantes que morreram.
Em nome dos meninos que morreram por nossa falta de cuidado, é preciso não parar.
Não sei é como fazer para actuar como devo.
Ana Maria

Anónimo disse...

Será que os serviços da autarquia teriam mesmo notificado o proprietário? ou o Sr. Presidente, no aperto a que esteve sujeito, quis dizer que tinham mandado notificar?
Para que possamos aferir da eficácia dos digníssimos funcionários camarários ou, melhor, de alguns, dou o seguinte exemplo:
Há pouco tempo, um quadro intermédio da CMS (Dep. Urbanismo) deu parecer no sentido de que eu fosse notificado para determinada finalidade;
O respectivo superior hierárquico demorou 3 meses e alguns dias a decidir que eu fosse notificado, apondo no respectivo processo o Despacho "Concordo, proceda-se em conformidade" e a sua assinatura!.
O Dr. Marinho Pinto tem um estilo muito próprio mas carradas de razão!

Fernanda Conde disse...

Dr. João Cachado,
Primeiramente será necessário saber o que fizeram ou querem fazer as famílias das crianças.
Já soube que qualquer grupo
de cidadãos pode apresentar-se como assistente num processo
que queira mover contra
a Câmara Municipal de Sintra
em relação à morte das crianças. Seria vantajoso que um
advogado fizesse parte do próprio grupo.
Também considero que
a comunidade não devia parar.
Há que pôr um movimento
em marcha.

Fernanda Conde